domingo, agosto 27

Eleonora, de Edgar Allan Poe

ELEONORA (1)

(1842)

Sub conservatione formae specificae salva anima. (2)

RAIMUNDO LULIO

PROVENHO de uma raça notável pelo vigor da imaginação e pelo ardor da paixão. Chamaram-me de louco; mas a questão ainda não está resolvida: se a loucura é ou não a inteligência sublimada, se muito do que é glorioso, se tudo o que é profundo não brota do pensamento enfermo, de maneira do espírito exaltado, a expensas da inteligência geral. Os que sonham de dia conhecem muitas coisas que escapam aos que sonham somente de noite. Nas suas visões nevoentas, logram vislumbres de eternidade, e sentem viva emoção, ao despertar, por descobrirem que estiveram no limiar do grande segredo. Aos poucos, vão aprendendo algo da sabedoria, o que é bom, e muito mais do simples conhecimento, o que é mau. Penetram, contudo, sem leme e sem bússola, no vasto oceano da "luz inefável", e de novo, como nas aventuras do geógrafo Núbio, agressi sunt mare tenebrarum, quid in eo esset exploraturi. Digamos, pois, que estou louco. Admito, pelo menos, que há duas distintas condições de minha existência mental: a condição duma razão lúcida, indiscutível, pertencente à memória de acontecimentos que formam a primeira época de minha vida, e uma condição de sombra e dúvida, relativa ao presente e à recordação que constitui a segunda grande era do meu ser. Portanto, acreditem no que irei contar do primeiro período, e, ao que eu irei relatar do tempo mais recente, dêem-lhe apenas o crédito que lhes merecer ou ponham tudo em dúvida; ou ainda, se não puderem duvidar, façam-se de Édipo diante do enigma. Aquela a quem amei na mocidade, e cujas lembranças agora descrevo, calma e nitidamente, era a filha única da única irmã da minha mãe, há muito falecida. Eleonora se chamava minha prima. Sempre vivemos juntos, sob um sol tropical, no vale das Relvas Multicores. Nenhum, passo perdido chegou alguma vez àquele vale, porque jazia bem distante e elevado, entre uma fieira de gigantescas colinas que se erguiam em torno dele, impedindo que a luz do sol penetrasse nos seus mais doces recantos. Nenhuma vereda se abria na sua vizinhança, e para chegar ao nosso lar feliz havia necessidade de afastar, com força, a folhagem de muitos milhares de árvores da floresta e de esmagar de morte o esplendor flagrante de milhões de flores. Era assim que vivíamos, sozinhos, nada conhecendo do mundo senão o vale, eu, minha prima e sua mãe.

Das sombrias regiões além das montanhas, no mais alto ponto do nosso limitado domínio, serpeava estreito e profundo rio, mais brilhante do que tudo, exceto os olhos de Eleonora; e, enroscando-se furtivamente em intrincados meandros, passava, finalmente, através de uma garganta trevosa, entre colinas ainda mais sombrias do que aquelas donde havia saído. Nós o chamávamos o "rio do Silêncio", porque parecia haver uma influência silenciante na sua torrente. Nenhum murmúrio se erguia de seu leito, e tão mansamente ele deslizava os seixos semelhantes a pérolas que gostávamos de contemplar bem no fundo do seu seio absolutamente não se moviam, mas maziam num contentamento imoto, na mesma posição de outrora, esplendendo gloriosamente para sempre. A margem do rio e dos numerosos riachos refulgentes que resvalavam através de caminhos tortuosos para o seu leito, bem como os espaços que se estendiam das margens para dentro das profundezas das torrentes até alcançarem a camada de seixos do fundo, esses lugares, não menos do que toda a superfície do vale, desde o rio até as montanhas que o rodeavam, estavam atapetados por uma macia relva verde, espessa, curta, perfeitamente igual, cheirando a baunilha, mas tão pintalgada por toda a parte de ranúnculos , amarelos, brancas margaridas, roxas violetas, e as rúbidas abróteas, que sua excessiva beleza falava a nossos corações, em altas vozes, do amor e da glória de Deus. E aqui e ali, em pequenos bosques, em torno dessa relva, como sonhos selváticos, erguiam-se fantásticas árvores cujos caules altos e esbeltos não se verticalizavam, mas curvavam-se graciosamente para a luz que assomava ao meio-dia, no centro do vale. Sua casca era mosqueada pelo vivido e alternado esplendor do ébano e da prata e era mais macia do que tudo, exceto as faces de Eleonora; de modo que, não fosse o verde brilhante das enormes folhas que brotavam do alto de suas frondes em linhas longas e trêmulas, brincando com os zéfiros, poder-se-ia imaginar que fossem gigantescas serpentes da Síria prestando homenagem a seu soberano, o Sol. Durante quinze anos, vagueamos, de mãos dadas, pelo vale, eu e Eleonora, antes que o Amor penetrasse em nossos corações. Foi tarde, numa tarde, no fim do terceiro lustro de sua vida e no quarto da minha, em que nos achávamos sentados sob as árvores serpentinas, estreitamente abraçados e contemplávamos nossos rostos dentro da água do rio do Silêncio. Nem uma palavra dissemos durante o resto daquele dia suave, e mesmo no dia seguinte nossas palavras eram roucas e trêmulas. Tínhamos arrancado daquelas águas o deus Eros e agora sentíamos que ele inflamara, dentro de nós, as almas ardentes de nossos antepassados. As paixões que durante séculos haviam distinguido nossa raça vieram em turbilhão com as fantasias pelas quais tinham sido igualmente notáveis e juntas sopraram uma delirante felicidade sobre o vale das Relvas Multicores. Todas as coisas se transformaram. Flores estranhas e brilhantes, em forma de estrelas, brotaram nas árvores onde antes nunca haviam sido vistas. Os matizes do verde tapete ficaram mais intensos, e, quando uma a uma, as brancas margaridas desapareceram, em floriram dezenas e dezenas de rúbidas abróteas. E a vida despertou nas nossas veredas, porque o alto flamingo, até então invisível, como todos os alegres pássaros resplendentes, ostentou para nós a plumagem escarlate. Peixes de ouro e prata encheram o rio, de cujo seio irrompeu, pouco a pouco, um murmúrio que foi crescendo, afinal, para se tornar uma melodia embaladora mais divina a da harpa de Éolo, mais doce do que tudo, exceto a voz de Eleonora. E então, uma nuvem imensa, que há muito observávamos nas regiões de Vésper, veio flutuando, toda rebrilhante de carmim e ouro, e pairou tranqüila sobre nós, descendo, dia a dia, cada vez mais baixo, até que suas extremidades descansaram sobre o cume das montanhas, transformando-lhes o negror em magnificência e encerrando-nos, como que para sempre, dentro de uma mágica prisão de grandeza e de glória. A beleza de Eleonora era angélica; era uma moça natural e inocente como a breve vida que levara entre as flores. Nenhum artifício disfarçava o férvido amor que lhe animava o coração e examinava comigo os seus mais remotos recantos quando juntos passeávamos no vale das Relvas Multicores, discorrendo a respeito das grandiosas mudanças que ali haviam recentemente ocorrido. Afinal, tendo um dia falado, entre lágrimas, da derradeira triste mudança que deveria sobrevir à Humanidade, daí por diante só tratou desse tristonho tema, entremeando-o em todas as nossas conversas, como as imagens que surgem, sempre as mesmas, a todo instante, a cada variação impressiva da frase, nos poemas do de Schiraz. Vira que o dedo da Morte lhe calcava o seio e que, como a efêmera, toda aquela beleza perfeita lhe fora dada apenas para morrer; mas, para ela, os terrores do túmulo consistiam somente numa consideração que me revelou certa tarde, ao crepúsculo, junto às margens do rio do Silêncio. Afligia-a o pensar que, tendo-a sepultado, no vale das Relvas Multicores, eu abandonasse para sempre aqueles felizes recantos, transferindo o amor que agora tão apaixonadamente lhe dedicava para alguma moça do mundo exterior e cotidiano. Ali, então, lancei-me precipitadamente aos pés de Eleonora e fiz um voto, a ela e ao Céu, de que jamais me casaria com qualquer filha da Terra, de que, de modo algum, seria perjuro à sua querida memória ou à memória do devotado afeto ela me tornara feliz. E invoquei o Supremo Senhor do universo como testemunha da piedosa solenidade de meu voto. E a maldição que para mim pedi a Ele e a ela, santa do Eliseu, se me mostrasse traidor a essa promessa encerrava um castigo de tão excessivo horror que não me é permitido mencioná-lo aqui. E os brilhantes olhos de Eleonora mais brilhantes se tornaram ao ouvir minhas palavras. Suspirou, como se um peso mortal lhe tivesse sido tirado do peito, e tremeu e chorou amargamente, mas aceitou o voto (que era ela senão uma criança?) e isso lhe tornou mais fácil o leito de morte. E ela me disse, não muitos dias depois, ao morrer tranqüilamente, que, pelo que eu fizera para lhe confortar o espírito, velaria por mim em espírito quando morresse e, se lhe permitido, voltaria a mim em forma visível nas vigílias da noite, mas, se isso fosse realmente superior ao poder das almas no Paraíso, ela pelo menos me daria freqüentes indicações de sua, presença, suspirando ao meu lado no vento da tarde, ou enchendo o vento que eu respirava com o perfume dos turíbulos dos anjos. E, com essas palavras nos lábios, entregou sua vida inocente, pondo um fim no primeiro período da minha. Até aqui narrei fielmente. Mas, ao transpor a barreira da vereda do tempo formada pela morte da minha bem-amada e continuar a segunda era de minha existência, sinto que uma sombra se espalha no meu cérebro e não confio na perfeita sanidade da narrativa, mais vamos adiante. Os anos passaram lenta e pesadamente e eu morava ainda no vale das Relvas Multicores; porém, uma segunda mudança operou-se em todas as coisas. As flores, em formas de estrela, murcharam nos caules das árvores e não mais apareceram. Desbotaram-se os matizes do verde tapete; e, uma a uma, as rúbeas abróteas feneceram. E em lugar delas ali brotaram, às dezenas, os olhos escuros das violetas, que se retorciam inquietas e estavam sempre pesadas de orvalho. E a Vida fugiu de nossos caminhos, porque o alto flamingo não mais ostentou para nós a escarlate plumagem, mas voou tristemente do vale para as colinas, com todos os resplendentes pássaros que tinham vindo em sua companhia. E os peixes de ouro e prata nadaram através da garganta para a parte mais baixa de nosso domínio e nunca mais encheram o manso rio. E a melodia embaladora que tinha sido mais suave que a harpa eólia e mais divina do que tudo, exceto a voz de Eleonora, foi pouco a pouco morrendo, em murmúrios cada vez menos audíveis, até que a corrente voltou, afinal, inteiramente, à solenidade de seu silêncio primitivo. E depois, finalmente, a imensa nuvem se ergueu e, abandonando os cumes das montanhas ao seu negror de outrora, voltou às regiões de Vésper, levando consigo todo o seu áureo esplendor magnificente, para longe do vale das Multicores. Contudo as promessas de Eleonora não foram olvidadas, pois eu ouvia o balouçar sonoro dos turíbulos dos anjos, e ondas de sagrado perfume não cessavam de flutuar por todo o vale. E nas horas solitárias quando meu coração batia opresso os ventos que me banhavam a fronte chegavam até mim carregados de leves suspiros, e indistintos murmúrios enchiam muitas vezes o ar noturno. Certa vez - oh, uma vez somente! -, fui despertado dum sono, semelhante ao sono da morte, pela pressão de lábios espirituais na minha face. Mas o vácuo em meu coração recusava-se, mesmo assim a preencher-se. Desejava ardentemente o amor que o tinha enchido até as bordas. Por fim, o vale passou a atormentar-me com a lembrança de Eleonora, e eu o deixei para sempre pelas vaidades e turbulentos triunfos do mundo. Encontrei-me numa estranha cidade, onde todas as coisas podiam ter servido para apagar da memória os doces sonhos que por tanto tempo sonhara no vale das Relvas Multicores. As pompas e faustos de uma corte majestosa, e o louco clangor de armas, e a formosura das mulheres perturbaram e envenenaram-me o cérebro. Mesmo assim, minha alma continuara fiel a seus votos, e os sinais da presença de Eleonora eram-me ainda mostrados nas horas silentes da noite. De repente, essas manifestações cessaram e o mundo se tornou mais negro diante de meus olhos. Fiquei horrorizado diante dos ardentes pensamentos que me possuíam, das terríveis tentações que me cercavam, porque tinha chegado à alegre corte do rei que eu servia, vinda de longínqua e ignota região, uma donzela, cuja beleza todo o meu perjuro coração imediatamente se rendeu diante de cujo escabelo eu me curvava sem relutar, no mais ardente e no mais abjeto culto de amor. Que era, na verdade a minha paixão pela jovem do vale, comparada com o fervor o delírio, com o enlevante êxtase de adoração com que eu arrojava toda a minha alma em prantos aos pés da etérea Hermengarda! Oh, a radiosa e seráfica Hermengarda! E nesta crença lugar não havia para nenhuma outra. Oh, a divina e angélica Hermengarda! E ao baixar o olhar para as profundezas de seus olhos inesquecíveis somente neles pensava.. . e "nela". Casei-me, sem temer a maldição que havia invocado. E seu rigor não se abateu sobre mim. E uma vez, mais uma vez ainda no silêncio da noite, chegaram-me, através das gelosias, os suaves suspiros que me tinham abandonado, modulando-se numa voz familiar e doce, que dizia: - Dorme em paz! Porque o Espírito do Amor reina e governa e, afeiçoando-te, com teu apaixonado coração, àquela que é Hermengarda, estás dispensado, em dispensado, em virtude de razões que irás conhecer no Céu, dos votos que fizeste a Eleonora.


1
Publicado pela primeira vez em The Gift: A Christmas and New Year's Present for 1842. Filadélfia, 1841. Título original: ELEONORA.

2
sob a conservação da forma especifica, salva a alma. (N. T.)


Nenhum comentário: