LEVAR PARA HOMO DIGITALIIS
A visão cyberpunk de mundo através das lentes
escuras de Matrix
Adriana Amaral
O cyberpunk é tanto como um subgênero
da literatura de ficção-científica como uma
visão de mundo que acompanha as transformações
tecnológicas. Sua estética está espalhada
por filmes, revistas em quadrinhos, jogos,
moda, música, RPGs, videoclipes, etc.
Mas, de que forma os filmes dos Irmãos Wachowsky
podem ser relacionados a ela?
As artes sempre trataram das angústias dos
homens de seu tempo e exprimem o imaginário
de sua época. A cultura tecnológica –
cuja transformação ainda está em andamento
– encontra-se na essência do ser humano e
apenas começa a potencializar-se enquanto
“realidade” no século XX. As imagens que
fundamentam essa mudança acompanham a
sociedade ocidental desde os mitos mais distantes
e perpassam também a literatura. A
ficção-científica nasce no contexto da Revolução
Industrial e consolida o cientificismo,
no qual máquinas, robôs e viagens espaciais
convivem com seres humanos. A ficçãocientífica
surge como gênero literário defi-
nidor da sociedade contemporânea. O cyberpunk,
seu rebento mais novo, é herdeiro
de uma tradição literária que vem do roman-
Mestre em Comunicação Social pelo Programa
de Pós-graduação em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Brasil e Doutoranda pelo mesmo programa.
tismo dos séculos XVIII e XIX, sobretudo
dos contos góticos e de horror. O gótico porque
atenta para a sublimidade, para os extremos
e a violência da condição humana frente
a um mundo em constante transformação. O
horror porque apresenta o encontro com o
“outro”, num misto de fascínio e rejeição,
atração e medo. O outro, seja ele um alienígena,
uma máquina dotada de inteligência
artificial ou um robô, representa a alteridade,
posta diretamente em conflito com o
humano, questionando assim a sua própria
validade, identidade e existência. Além do
romantismo, a literatura cyberpunk tem suas
origens no simbolismo, no surrealismo, no
existencialismo e na geração beatnik. Todos
esses movimentos literários têm como foco
o sentimento de desencantamento do mundo,
onde real e sonho ou verdade e absurdo parecem
indistintos. O conflito homem-máquina
(seja pelo medo de dominação ou pela euforia)
e o questionamento a respeito da existência
humana constituem os fios condutores da
trilogia Matrix. Esse misto de medo e adoração
gera histórias que tanto parecem ser contra
quanto a favor da tecnologia. Matrix tece
uma crítica à tecnologia, mas em contrapartida
utiliza-se da tecnologia dos efeitos especiais,
quase que, comprovando ser impossível
escapar a ela.
2 Adriana Amaral
Já o termo cyberpunk foi cunhado pelo escritor
norte-americano Bruce Bethke em seu
conto homônimo, publicado primeiramente
em um fanzine em 1980. Em 1984, Bethke
republicou a estória na prestigiosa revista de
ficção-científica Amazing Stories. Também
em 1984, o escritor William Gibson lança,
Neuromancer, primeira parte da sua trilogia
sobre o ciberespaço. Ao contar a estória
de Case, um pirata digital, Gibson estabelece
toda uma problemática e estética (seus
personagens foram chamados de Mirrorshades
porque usavam um figurino de jaquetas
de couro pretas e óculos escuros espelhados)
para uma geração de escritores. A estória sobre
a paranóia de um hacker frente ao poder
das megacorporações que aprisionam os
indivíduos é a principal narrativa de Neuromancer
e, também está presente em Matrix,
na dicotomia Anderson/Neo, em sua passagem
do mundo “real/aparente” ao mundo
virtual. Ainda nesse mesmo ano, o termo
cyberpunk foi popularizado, quando o jornalista
do Washington Post, Gardner Ozois,
rotulou de cyberpunk o movimento de novos
autores de ficção-científica. William Gibson,
Bruce Sterling, Bruce Bethke, Pat Cadigan,
Lewis Shiner, Greg Bear, entre outros estão
entre os expoentes dessa tendência literária.
A palavra cyberpunk origina-se do termo cibernética
– que é derivada do grego kubernetes,
que significa piloto, ou governador,
num sentido daquele que conduz. A cibernética
é um conceito cunhado pelo matemático
Norbert Wiener em 1948 e trata das relações
homem-máquina em relação à troca de informações
entre ambos. Neo, é o piloto, o líder
de um povo, um cyberpunk na acepção original.
O cyberpunk também é fruto da cultura
pop. Ao prefixo cyber foi agregado o punk,
termo que originalmente designava os vagabundos,
mas que adquiriu uma outra conotação
a partir do movimento punk na música
(com seus sons selvagens de três acordes,
visual inspirado nos sadomasoquistas e
lemas como faça você mesmo). A visão de
mundo atual que o cyberpunk expressa, engloba,
literatura, música, cinema, teorias sociais
e filosóficas, a cultura jovem, a cultura
da MTV e a cultura do PC/Macintosh.
Escritores como Mary Shelley, Philip K.
Dick e J.G. Ballard, Gibson, teóricos como
McLuhan, Wiener, Kroker e Baudrillard e a
música de Patti Smith, Velvet Underground,
Ramones, Sex Pistols são tidos como fontes
de sua influência. Larry McCafferry,
editor da coletânea de ficção e não-ficção
cyberpunk, Storming the reality studio, indica
que os autores da geração cyberpunk
estão para a fição-científica como o punk
rock está para a música pop: ambos criaram
uma ruptura em seus paradigmas. Essa postura
frente ao mundo contemporâneo também
está presente na ideologia californiana
dos primeiros hackers da década de 60, que
visavam partilhar o conhecimento através de
uma tecnologia acessível a todos, personifi-
cada nos microcomputadores pessoais, lançados
no mundo no ano de 1984. A visão
cyberpunk reconhece um espaço público em
que a tecnologia media nossas vidas sociais.
Segundo o pesquisador Kevin McCarron,
o cyberpunk apresenta questões filosóficas
de ordem moderna, nos remetendo à dicotomia
cartesiana mente/corpo, no qual a mente
pura apresenta um desprendimento puritano
do corpo, sendo este, um acidente de percurso.
A narrativa cyberpunk questiona as
hierarquias humanas propondo uma diminuição
e, quase um borrão, nas diferenças entre
animais, humanos, andróides, etc. Há um
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A visão cyberpunk de mundo através das lentes escuras de Matrix 3
desdém em relação ao físico, uma fascinação
com as formas pelas quais a carne é irrelevante
comparada com a memória Em Matrix,
corpo e mente encontram-se desprendidos
e há uma glorificação da mente enquanto
elemento superior ao corpo, afinal é através
dela que são acessados os mundos dentro e
fora da própria matrix. A superioridade da
mente sobre o corpo é ressaltada nos filmes,
uma vez que a mente desencadeia e comanda
as ações de luta entre as personagens. As estórias
também destacam a questão da identidade/
existência e o fim da memória privada.
O computador, seja o hardware ou o
software, é importante por ser uma metáfora
para a memória humana. Nesse sentido, o
grupo de resistência montado por Morpheus
está tentando preservar a memória humana
do esquecimento provocado pelas máquinas.
McCarron lista ainda outros pontos centrais
na ficção cyberpunk, dos quais destacamos
os mais importantes, relacionando-os
com os filmes:
• Falta de interesse pela reprodução biológica
– O interesse pelo sexo só aparece
para os que estão fora da Matrix,
seja quando Neo e Trinity transam ou
mesmo na “rave”/ orgia protagonizada
pelos habitantes de Zion nesse mesmo
momento.
• Há possibilidade de mundos paralelos –
Os mundos de dentro e fora da Matrix.
• O ciberespaço é apresentado teologicamente
– Conceitos religiosos permeiam
a trilogia com o intuito de apresentar a
matrix como uma entidade simbólica e
mística.
• Há uma sátira ao “capitalismo” e à “sociedade”
em geral, mas, há uma utilização
extensiva dos meios de comunicação
para divulgar as obras – Essa característica
é o grande paradoxo de Matrix
e de toda a cultura cyberpunk, ou seja, é
um produto que critica os usos da tecnologia
pela sociedade e ao mesmo tempo
utiliza-se das estratégias de mídia existentes
nela para se promover.
Em termos de estética cyberpunk
destacam-se dois elementos fundamentais:
a cidade e o personagem. A cidade
aparece tanto como um parque temático,
quanto uma simulação, combinando símbolos
da era espacial de alta tecnologia com a
visão vitoriana do crescimento desordenado
e não planejado. É uma entidade negativa,
um espaço escuro e superpovoado, claustrofóbica,
quebrada por formas de neon . Nesse
cenário, o submundo e a escuridão da rua
são componentes essenciais do gênero.
Quanto aos personagens do cyberpunk há
uma ampla variação, de hackers a mercenários.
Contudo, o andarilho é um dos arquétipos
centrais. Figura presente na literatura
de estrada dos beatniks, herdeiro da filosofia
nietzscheana e descrito pela poesia de Baudelaire
como “o pesquisador do infinito”, o
andarilho é trazido das estradas empoeiradas
para o ciberespaço. Ele é o cowboy digital
Case, de Neuromancer, que inspirou tanto
a canção “The Wanderer” (O Andarilho) do
U2, como o hacker Neo de Matrix. Anderson
representa o cidadão comum, que possui
uma rotina e um lar fixos. Neo é o andarilho,
um Johnny Cash que em vez do violão
perambula com armas pesadas pela rede.
Seja por suas relações com a cultura tecnológica,
pela herança do movimento literário
cyberpunk, pela visão tecnológica de
mundo, pela estética da cultura pop (moda,
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música, etc), Matrix está indissociavelmente
ligado à cultura cyberpunk, apresentando-se
como uma obra que exprime visões sobre o
pensamento contemporâneo sobre a tecnologia.
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