sexta-feira, setembro 1

Roberto Arlt (1900-1942)

este texto foi extraido da edição da L&PM "ARMADILHA MORTAL", coleção pocket, com contos de Roberto Arlt. eu recomendo a aquisição do livro para gregos e troianos

ARLT, ROBERTO (1900-1942)
jornalista e escritor argentino

OUTRO ARLT, IDENTICO A SI MESMO, Pablo Rocca

I

As historias que integram esta coletanea jamais foram reunidas em volume pelo autor. A auspiciosa descoberta oferece uma nova perspectiva da obra de Roberto Arlt (Buenos Aires, 1900-1942) e também da literatura policial argentina. Há dez anos se soube, gracas as investigacoes de Omar Borre (pers) – precisamentre o responsavel pelo achado -, que Arlt publicou uns setenta relatos na imprensa periodica, dos quais incluiu em livro apenas vinte e quatro (quinze em El jorobadito, 1933, nove em El criador de gorilas, 1941). a maior parte ficou inedita.

Por volta de 1931, o escritor, cuja idade era a do século, já vivera intensamente e tinha uma extensa e quase acabada obra em prosa. Aos varios contos publicados se somavam seus tres primeiros e melhores romances (El juguete rabioso, 1926, Los siete locos, 192921, e sua continuacao, Los lanzallamas, 1931), além de centenas de cronicas, as "aguasfortes" que, desde 14 de agosto de 1928, vinham aparecendo regularmente em El Mundo – bem sucedidas notas que flutuavam, "horrivelmente diagramadas, entre as paginas 4 e 6 do matutino", segundo informa Osvaldo Soriano22(pers).

Esses textos padeceram de um infortunio semelhante ao de seus contos: muitos deles continuaram dispersos naquelas paginas agora secretas.

Nessa época, embora sem negligenciar a narrativa, Arlt decide escrever pecas de teatro, uma mudanca de rota comum a varios autores contemporaneos, atentos às transformacoes sociais e politicas do mundo dilacerante em que viviam e convictos de obter, na ribalta, uma comunicacao mais imediata e massiva com o publico23.

"Escrevi sempre em redacoes barulhentas, acossado pela obrigacao da coluna diaria", diz o autor, no preambulo de Loz lanzallamas. Outro assedio mais forte, quase uma imposicao externa ou mesmo um mandato, daria alento a sua escritura: vida e milagres dos tipos humanos da tumultuosa Buenos Aires que ele conheceu e reproduziu em sua literatura, a cidade multitudinaria (dic) que recorreu palmo a palmo – como o faz Silvio Astier, seu alter ego em El juguete rabioso – a violencia e o crime dos quais prestava contas diariamente, como cronista policial nas paginas de Critica (1927).

Considerados seus antecedentes, modalidades de produzir e obsessoes literarias, estas historias "policiais" eram uma consequencia inevitavel. O fascinio de Arlt pela violencia e pelo crime, presente em todo o seu trabalho visivel, fatalmente o levaria a escreve-las.

Essa predestinacao foi percebida por outro grande escritor. Roberto Arlt – anotou Ricardo Piglia (pers) – faz em varias paginas uma "assimilacao (...) da critica com a perseguicao policial (...), identifica sempre a escritura com o crime, a bandalheira, a falsificacao, o roubo"24.

Em 1953, ao fazer a primeira selecao de contos policiais argentinos, Rodolfo Walsh (pers) afirmou, categoricamente: "Ha dez anos, em 1942, apareceu o primeiro livro de contos policiais em castelhano. Seus autores eram Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Chamava-se Seis problemas para don Isidro Parodi"25.

Mais, tarde, em 1977, dois estudiosos explorando a riqueza do genero na Argentina, perceberam o equivoco de Walsh. Demonstraram que os precursores – Luis V Varela, Paul Groussac, Eduard L Holmberg, Horacio Quiroga e Vicente Rossi – tinham escrito relatos policiais segundo os modelos de Edgar Allan Poe, Conan Doyle e inclusive Gaston Leroux, uma "tradicao que traz muitos ingredientes da velha literatura de folhetim, como seu deus ex machina, seus truques, suas inverossimilhancas e seus apelos ao sentimental e ao extraordinario"26. Roberto Arlt recorre a muitos desses expedientes em seus relatos "criminais". E embora esse importante ensaio não mencione, os contos policiais de Arlt obrigam a uma reordenacao do corpus literario argentino e a um questionamento das nutridas apreciacoes criticas da obra desse criador singular.

II

Atraido pelas condicoes da vida puerca bonaerense e pelas zonas obscuras da alma humana, e também – como observa Jorge B Rivera – em decorrencia de sua extracao social e de sua formacao peculiar, "Arlt possui uma visao mais permeavel e aberta da literatura e das tradicoes literarias, que lhe permite colocar-se numa postura receptiva e integradora (...) frente as polarizacoes exclusivistas dos escritores de Boedo e de Florida (stud)"27. Com a mesma disposicao com que rechaca a filiacao restrita a um so rosto do realismo, pode libertar-se do preconceito inerente em seu tempo a respeito da narrativa policial, entao considerada – e por muito tempo mais – uma categoria menor28.

É sabido que a denominacao "literatura policial", como todo rotulo, não define o genero com precisao. Mas – a comodidade obriga – pelo menos seis contos de Arlt aqui reunidos se inscrevem nessa linha. Se estao ligados a alguma tradicao do genero, esta é a do relato policial de "enigma" ou 'problema' e não a da narracao que também mostra abrangencia social, nas vertentes de Dashiel Hasmmet ou James Hadley Chase. uma articulacao "engenhosa" e 'artificial" – segundo a depreciativa opiniao de Borges – caracteriza essa tendencia: "os crimes, geralmente, não são descobertos mediante raciocínios abstratos, mas por obra da fortuna e atraves de informacoes ou delacoes"29.

Examinemos o funcionamento dessas tecnicas nos delitos literarios de Arlt, sempre resolvidos com o "final de efeito" que pedia Poe e que também Quiroga soube usar.

A primeira regra, o acaso, predomina em A Pista dos Dentes de Ouro: a fortuita descoberta de um pedaco de papel brilhante permite a elucidacao da horrivel morte de Domenico Salvato. Não obstante, o desenlace contradiz, em parte, a definicao borgiana, uma vez que a dentista encobre o assassino30. Tambem A Vinganca do Macaco e O Misterio dos Tres Sobretudos são tipicos contos de "enigma". No primeiro caso – notoriamente inspirado em O Duplo Assassinato da Rua Morgue, de E A Poe - , uma ocorrencia acidental desvia o curso de um crime planejado nos mais infimos detalhes. No segundo exemplo, uma falha desenreda a intrincada execucao de um truque bem construido.

Por sua vez O Enigma das Tres Cartas e Um Crime Quase Perfeito dao prioridade a "informacao" que, matizada por pistas falsas, o narrador vai filtrando, de modo que possamos, no curso da historia, destrinçar31, respectivamente, um habil plano de extorsao e um assassinato premeditado. Um Argentino entre Gangsteres, no entanto, não se enquadra nas duas premissas borgianas: o engenheiro condenado pela mafia estadunidense "abstrai" a eliminacao de seus captores, e o leitor acompanha esse procedimento ate o brusco final.

Muito discutivel seria a catalogacao de A Dupla Armadilha Mortal como conto do genero em questao. Pelo tipo dos personagens e pelos ingredientes politicos, afins com os dois romances já referidos (intrigas entre inimigos durante a guerra civil espanhola), este texto, que talvez seja o melhor de todos, é uma historia de espionagem militar.

A conhecida vertente folhetinesca da narrativa artliana volta a jorrar em varios desses relatos, em dois deles parodiando os lugares comuns mais degradados do tema, presentes tanto no jornalismo como na literatura ou no cinema: "é o crime hediondo ansiado pelos leitores de dramalhoes arrepiantes", diz, com evidente ironia, em A Pista dos dentes de ouro. ou "era uma fantasia de romance policial, mas convinha verificar a hipotese", comenta o engenhoso narrador de Um crime quase perfeito.

III

O
dinheiro e o roubo (ou o dinheiro roubado) são dois aspectos centrais que se complementam em seus romances. Astier, em El juguete rabioso, prega o afeto ao "dinheiro dos latrocinios, aquele dinheiro que tinha para nos um valor especial e ate parecia nos falar com expressiva linguagem (...), não o dinheiro vil e odioso que é preciso ganhar com trabalhos penosos". O roubo e a bandalheira movem primeiro Erdosain e logo seus parceiros em Los siete locos e em Los lanzallamas. O crime também perturba seus personagens. Assim, no primeiro desses romances, le-se: "de acordo com o que estudamos no colegio, o crime acaba por enlouquecer o criminosos. Como pode ser que, na vida real, cometas um crime e consigas ficar tranquilo?"

Todos os personagens de seus contos policiais são movidos pela ambicao material, com a excecao de Lauro Spronzini em A pista dos dentes de ouro. Em tal sentido, os conflitos intimos dos personagens perdem energia (não há nenhum tao complexo como o Rigoletto de El jorobadito). Não se assiste a elaboracao metafisica (dic) do mal que se agita em seus romances. No entanto, os tracos principais de sua obra não são de todo abandonados. Já em Lauro Spronzini uma vigorosa moral consubstanciada na vinganca pela morte de um ente querido. Há, ao mesmo tempo, uma moral gangsteriana coerente, apesar de seu desprezo pela vida e da perseguicao de seus fins a qualquer preco (Um argentino entre gangsteres). de forma assimetrica, o conto O misterio dos tres sobretudos recupera a fobica condenacao a falsa moral rapinante dos pequenos funcionarios, um leit motiv (dic) de Arlt que – como diz sua filha Mirta, estudiosa da obra paterna -, "persegue o pequeno comerciante, com bengala parecida com a de Charlie Chaplin contra os guardas"32. Tambem estao presentes as observacoes sociais sobre as penurias economicas e a vida opressiva de uma nova classe media portenha.

Voltam os personagens inventores, mas com aspiracoes um tanto mais modestas. Como Erdosain, que imagina a rosa de cobre33, ou o Astrolgo, que sonha dirigir uma linha de producao de gases venenosos em Los lanzallamas, aqui o engenheiro Lacava fabrica, embora obrigado, uma roleta viciada (também o farmaceutico Ergueta, em Los siete locos, tinha essa fantasia). A sua maneira, o ladrao pode ser um inventor. também as tramas da imaginacao esbocadas em relatos maiores se convertem em contos, como a idéia de Barsut de enviar a Erdosain, para humilha-lo, "uma bomba pelo correio, ou uma serpente numa caixa de papelao" (Los siete locos), dois procedimentos intimidatorios de que é vitima o cardiaco senhor Perolet em O enigma das tres cartas.

"Há crimes que não podem ficar sem castigo", diz Arlt, numa frase de hausto (dic) dostoievskiano. Este volume apresenta uma colecao de contos de crimes quase perfeitos, para sua divulgacao no Brasil. Há outros que estao impunes em paginas amareladas. Oxala sejam prontamente esclarecidos.

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