sexta-feira, novembro 24

edgar allan poe: LIGEIA , + Joseph Glanvill


LIGÉIA1, de Edgar Allan Poe
(1838)

E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade. Joseph GLANVILL (2)

JURO PELA MINHA ALMA que não posso lembrar-me quando, ou mesmo precisamente onde, travei, pela primeira vez, conhecimento com Lady Ligéia. Longos anos se passaram desde então e minha memória se enfraqueceu pelo muito sofrer. Ou, talvez, não posso agora reevocar aqueles pontos, porque, na verdade, o caráter de minha bem-amada, seu raro saber, sua estranha mas plácida qualidade de beleza e a emocionante e subjugante eloquência de sua linguagem musical haviam aberto caminho dentro do meu coração, a passos tão constantes e tão furtivos que passaram despercebidos e ignorados. Entretanto, acredito que a encontrei, pela primeira vez, e depois frequentemente, em alguma grande e decadente cidade velha das margens do Reno. Quanto à família... certamente ouvia-a falar a seu respeito. Que fosse de origem muito remota é coisa que não se pode pôr em dúvida. Ligéia! Ligéia! Mergulhado em estudos, mais adaptados que quaisquer outros, pela sua natureza, a amortecer as impressões do mundo exterior, é apenas por aquela doce palavra, Ligéia, que na imaginação evoco, diante de meus olhos, a imagem daquela que não mais existe. E agora, enquanto escrevo, uma lembrança me vem, como um clarão: que eu jamais conheci o nome de família daquela que foi minha amiga e minha noiva, que se tornou a companheira de meus estudos e finalmente a esposa de meu coração. Fora uma travessa injunção de Ligéia ou uma prova da força de meu afeto que me levara a não indagar esse ponto? Ou fora antes um capricho de minha parte, uma oferta loucamente romântica, no altar da mais apaixonada devoção? Só confusamente me lembro do próprio fato. Mas há alguma coisa de admirar no ter eu inteiramente esquecido as circunstâncias que o originaram ou o acompanharam? É, na verdade, se jamais o espírito de Romance, se jamais a pálida Ashtophet, de asas tenebrosas, do Egito idólatra, preside, como dizem, aos casamentos de mau agouro, então com mais certeza presidira ao meu. Há no entanto, um assunto querido, a respeito do qual a memória não me falha. É a pessoa de Ligéia. Era de alta estatura, um tanto delgada, e, nos seus últimos dias, bastante emagrecida. Tentaria em vão retratar a majestade, o tranquilo desembaraço de seu porte, ou a incompreensível ligeireza de elasticidade de seu passo. Ela entrava e saía como uma sombra. Jamais me apercebia de sua entrada no meu gabinete de trabalho, exceto quando ouvia a música de sua doce e profunda voz, quando punha sua mão de mármore sobre o meu ombro. Em beleza de rosto, nenhuma mulher jamais se igualou. Era o esplendor de um sonho de ópio, uma visão aérea e encantadora, mais estranhamente divina que as fantasias que flutuam nas almas dormentes das filhas de Delos. Entretanto, não tinha suas feições aquele modelado regular, que falsamente nos ensinam a cultuar nas obras clássicas do paganismo. "Não há beleza rara - disse Bacon, Lorde Verulam, falando verdadeiramente de todas as formas e gêneros de beleza - sem algo de estranheza nas proporções." Contudo, embora eu visse que as feições de Ligéia não possuíam a regularidade clássica, embora percebesse que sua beleza era realmente "esquisita" e sentisse que muito de "estranheza" a dominava, tentara em vão descobrir essa irregularidades e rastrear, até sua origem, minha própria concepção de estranheza. Examinava o contorno da fronte elevada e pálida: era impecável - mas quão fria, na verdade, é esta palavra, quando aplicada a uma majestade tão divina! - pela pele que rivalizava puro marfim, pela largura imponente e calma, a graciosa elevação das regiões acima das fontes; e depois aquelas luxuriantes e luzentes madeixas, naturalmente cacheadas, dum negro de corvo, realçando a plena força da expressão homérica: "cabelo hiacintino" considerava as linhas delicadas do nariz e em nenhuma outra parte senão nos graciosos medalhões dos hebreus, tinha eu contemplado perfeição semelhante. Tinham a mesma voluptuosa maciez de superfície, a mesma tendência quase imperceptível para o aquilino, mesmas narinas harmoniosamente arredondadas, a revelar um espirito livre. Olhava a encantadora boca. Nela esplendia de fato o triunfo de todas as coisas celestes: a curva magnífica do curto lábio superior, o aspecto voluptuoso e macio do inferior, as covinhas do rosto, que pareciam brincar, e a cor que falava; os dentes, refletindo, com uma irradiação quase cegante, cada raio da luz que sobre eles caía, quando ela os mostrava num sorriso sereno e plácido, que era no entanto o mais triunfantemente radioso de todos os sorrisos. Analisava a forma do queixo, e aqui também encontrava a graciosidade da largura, a suavidade e a majestade, a plenitude e a espiritualidade grega, aquele contorno que o deus Apolo só revelou num sonho a Cleómenes, o filho do ateniense. E depois eu contemplava os grandes olhos de Ligéia. Para os olhos, não encontramos modelos na remota antiguidade. Podia ser, também, que naqueles olhos de minha bem-amada repousasse o segredo a que alude Lorde Verulam. Eram, devo crer, bem maiores que os olhos habituais de nossa raça. Eram mesmo mais rasgados que os mais belos olhos das gazelas da tribo de Nourjahad. No entanto, era somente a intervalos, em movimentos de intensa excitação, que essa peculiaridade se tornava mais vivamente perceptível em Ligéia. E, em tais momentos, era a sua beleza - pelo menos assim surgia diante de minha fantasia exaltada - a beleza de criaturas que se acham acima ou fora da terra, a beleza da fabulosa huri dos turcos. As pupilas eram do negro mais brilhante, veladas por longuíssimas pestanas de azeviche. As sobrancelhas, de desenho levemente irregular, eram da mesma cor. Toda a "estranheza" que eu descobria nos olhos era de natureza distinta da forma, da cor ou do brilho deles e devia ser, decididamente, atribuida à sua expressão. Ah, palavra sem significação, e simples som, por trás de cuja vasta latitude entrincheiramos nossa ignorância de tanta coisa espiritual. A expressão dos olhos de Ligéia. . . Quantas e quantas horas refleti sobre ela! Quanto tempo esforcei-me por sondá-la, durante uma noite inteira de verão! Que era então aquilo - aquela alguma coisa mais profunda que o poço de Demócrito - que jazia bem no fundo das pupilas de minha bem-amada? Que era aquilo? Obsessionava-me a paixão de descobri-lo. Aqueles olhos, aquelas largas, brilhantes, divinas pupilas tornaram-se para mim as estrelas gêmeas de Leda e eu para elas o mais fervente dos astrólogos. Não há caso, entre as numerosas anomalias incompreensíveis da ciência psicológica, mais emocionantemente excitante do que o fato - nunca, creio eu, observado nas escolas - de nos encontrarmos muitas vezes, em nossas tentativas de trazer à memória alguma coisa há muito tempo esquecida, justamente à borda da lembrança, sem poder, afinal, recordar. E assim, quantas vezes, na minha intensa análise dos olhos de Ligéia, senti aproximar-se o conhecimento completo de sua expressão! Senti-o aproximar-se, e contudo não estava ainda senhor absoluto dele, e por fim desaparecia totalmente! E (estranho, oh, o estranho de todos os mistérios!) descobri nos objetos mais comuns do universo uma série de analogias para aquela expressão. Quero dizer que, depois da época em que a beleza de Ligéia passou para o meu espírito e nele se instalou como num relicário, eu deduzia de vários seres do mundo material, uma sensação idêntica a que me cercava e me penetrava sempre, quando seus grandes e luminosos olhos me fitavam. Entretanto, nem por isso sou menos paz de definir essa sensação, de analisá-la, ou mesmo de ter dela uma percepção integral. Reconheci-a, repito-o, algumas vezes no aspecto duma vinha rapidamente crescida, na contemplação de uma falena, duma borboleta, duma crisálida, duma corrente de água precipitosa. Sentia no oceano, na queda dum meteoro. Senti-a nos olhares de pessoas extraordinariamente velhas. E há uma ou duas estrelas no céu (uma especialmente, uma estrela de sexta grandeza dupla e mutável, que se encontra perto da grande estrela da Lira) que, vistas pelo telescópio, me deram aquela sensação. Sentindo-me invadido por ela ao ouvir certos sons de instrumentos de corda e, não poucas vezes, ao ler certos trechos de livros. Entre numerosos outros exemplos, lembro-me de alguma coisa num livro de Joseph GLANVILL que (talvez simplesmente por causa de sua singularidade, quem sabe lá?) jamais deixou de inspirar-me a mesma sensação: "E ali dentro está a vontade que não morre. Quem conhece os mistérios da vontade, bem como seu vigor? Porque Deus é apenas uma grande vontade, penetrando todas as coisas pela qualidade de sua aplicação. O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de débil vontade." Com o correr dos anos e graças a subseqüentes reflexões, consegui descobrir, realmente, certa ligação remota entre esta passagem do moralista inglês e parte do caráter de Ligéia. Uma intensidade , de pensamento, de ação ou de palavra era possivelmente nela resultado, ou pelo menos sinal, daquela gigantesca volição que, durante nossas longas relações, deixou de dar outras e mais imediatas provas de sua existência. De todas as mulheres que tenho conhecido, era ela, a aparentemente calma, a sempre tranqüila Ligéia, a mais violentamente presa dos tumultuosos abutres da paixão desenfreada. E só podia eu formar uma estimativa daquela paixão pela miraculosa dilatação daqueles olhos que, ao mesmo tempo, me encantavam e atemorizavam, pela quase mágica melodia, pela modulação, pela clareza e placidez de sua voz bem grave e pela selvagem energia (tornada duplamente efetiva pelo contraste com sua maneira de emiti-las) das ardentes palavras que habitualmente pronunciava.

Falei do saber de Ligéia: era imenso, como jamais encontrei em mulher alguma. Era profundamente versada em línguas clássicas, e tão longe quanto iam meus próprios conhecimentos das modernas línguas européias, nunca a descobri em falta. E na verdade, em qualquer tema dos mais admirados, precisamente porque mais abstrusos da louvada erudição acadêmica, encontrei eu jamais Ligéia em falta? Quão singularmente, quão excitantemente, este único ponto da natureza de minha mulher havia, apenas neste último período, subjugado a minha atenção! Disse que seu saber era tal como jamais conhecera em mulher alguma, mas onde existe o homem que tenha atravessado e com êxito, todas as vastas áreas da ciência moral, matemática? Eu não via então o que agora claramente os percebo, que os conhecimentos de Ligéia eram gigantescos, espantosos. Entretanto, estava suficientemente cônscio de sua infinita supremacia para resignar-me, com uma confiança de criança, a ser por ela guiado através do caótico mundo da investigação metafísica em que me achava acuradamente ocupado durante os primeiros anos de nosso casamento. Com que vasto triunfo, com que vivo deleite com que tamanha esperança etérea sentia eu - quando ela se curvava sobre mim, em meio de estudos tão pouco devassados, tão pouco conhecidos - alargarse pouco a pouco, diante de mim aquela deliciosa perspectiva, ao longo de cuja via esplêndida e jamais palmilhada podia eu afinal seguir adiante até o termo de uma sabedoria por demais preciosa e divina para não ser proibida!

Quão pungente, então, deve ter sido o pesar com que, depois de alguns anos, vi minhas bem fundadas esperanças criarem asas por si mesmas e voarem além! Sem Ligéia, era apenas uma criança tateando no escuro. Sua presença, somente suas lições podiam tornar vivamente luminosos os muitos mistérios do transcendentalismo em que estávamos imersos. Privado do clarão radioso de seus olhos, aquela literatura leve e dourada tornava-se mais pesada e opaca do que o simples chumbo. E agora aqueles olhos brilhavam cada vez menos frequentemente sobre as páginas que eu esquadrinhava. Ligéia adoeceu. Os olhos ardentes esbraseavam numa refulgência por demais esplendorosa; os pálidos dedos tomaram a transparência da morte e as veias azuis, na elevada fronte, intumesciam-se, e palpitavam, impetuosamente, aos influxos da mais leve emoção. Vi que ela ia morrer e, desesperadamente, travei combate em espirito com o horrendo Azrael. E os esforços daquela mulher apaixonada eram, com grande espanto meu, mais enérgicos mesmo do que os meus. Havia muito na sua severa natureza para fazer-me crer que, para ela, a morte chegaria sem terrores; mas assim não foi. As palavras são impotentes para transmitir qualquer justa idéia da ferocidade de resistência com que ela batalhou contra a Morte. Eu gemia de angústia diante daquele lamentável espetáculo. querido acalmá-la, teria querido persuadi-la, mas na intensidade de seu feroz desejo de viver, de viver, nada mais que viver, todos os alívios e razões teriam sido o cúmulo da loucura. Entretanto nem mesmo no derradeiro instante, entre as mais convulsivas contorções do seu espírito ardente, foi abalada a externa placidez de seu porte. Sua voz tornou-se mais suave, tornou-se mais grave, mas eu não queria confiar na significação estranha daquelas palavras, sossegadamente pronunciadas. Meu cérebro vacilava quando eu escutava extasiado por uma melodia sobre-humana, aquelas elevações e aspirações que os homens mortais jamais conheceram até então. Que ela me amasse, não podia pô-lo em dúvida, e era-me fácil saber que, num peito como o seu, o amor não deveria ter reinado como uma paixão comum. Mas somente na morte é que compreendi toda a força de seu afeto. Durante longas horas, presas minhas mãos nas suas, derramava diante de mim a superabundância dum coração cuja devoção, mais do que apaixonada, atingia as raias da idolatria. Como tinha eu merecido a beatitude de ouvir tais confissões? Como tinha eu merecido a maldição de que minha me fosse roubada na hora mesma em que mais falta fazia? Mas sobre essa questão não posso suportar o demorar-me. Permiti-me apenas dizer que no abandono mais do que feminino de Ligéia a um amor, ai de mim!, inteiramente imerecido, concedido a quem era de todo indigno, eu afinal reconheci o princípio de sua saudade , com um desejo, tão avidamente selvagem, da vida que agora lhe fugia com tal rapidez. É essa violenta aspiração, essa ávida veemência do desejo da vida, apenas da vida, que não tenho poder para retratar, nem palavras capazes de exprimir. Bem no meio da noite durante a qual partiu, chamando autoritariamente, a seu lado, ela me pediu para repetir-lhe certos versos, que ela mesma compusera, não muitos dias antes; obedeci-lhe. Eram os que seguem: Vede! é noite de gala, hoje, nestes anos últimos e desolados! Turbas de anjos alados, em vestes de gaze, olhos em pranto banhados, vêm sentar-se no teatro, onde há um drama singular, de esperança e agonia; e, ritmada, uma orquestra derrama das esferas a doce harmonia. Bem à imagem do Altíssimo feitos, os atores, em voz baixa e amena, murmurando, esvoaçam na cena, São de títeres, só, seus trejeitos, sob o império de seres informes, dos quais cada um a cena retraça a seu gosto, com as asas enormes esparzindo invisível Desgraça!

Certo, o drama confuso já não poderá ser una dia olvidado, com o espectro a fugir, sempre em vão pela turba furiosa acossado, numa ronda sem fim, que regressa, incessante, ao lugar de partida; e há Loucura, e há Pecado, e é tecida de Terror toda a intriga da peça! Mas, olhai! No tropel dos atores uma forma se arrasta e insinua! Vem, sangrenta, a enroscar-se, da nua e erma cena, junto aos bastidores, a enroscar-se! Um a um, cai, exangue, cada ator, que esse monstro devora. E soluçam os anjos - que é sangue, sangue humano, o que as fauces lhe cora. E se apagam as luzes! Violenta, a cortina, funérea mortalha, sobre os trêmulos corpos se espalha, ao cair, com um rugir de tormenta. Mas os anjos, que espantos consomem, já sem véus, a chorar, vêm depor que esse drama, tão tétrico, é "0 Homem" e que o herói da tragédia de horror é o Verme Vencedor.

- Ó, Deus! - quase gritou Ligéia, erguendo-se sobre os pés e estendendo os braços para a frente num movimento espasmódico, quando terminei aqueles versos. - Ó, Deus! Ó, Pai Divino! Deverão ser essas coisas inflexivelmente assim? Não será uma só vez vencido esse vencedor? Não somos uma parte, uma parcela de Ti? .... quem conhece os mistérios da vontade, bem como seu vigor? O homem não se submete aos anjos, nem se rende inteiramente a morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade. E então, como se a emoção a exaurisse, ela deixou os alvos caírem e regressou solenemente a seu leito de morte. E enquanto exalava os últimos suspiros, veio de envolta com eles um baixo murmúrio de seus lábios: "O homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade." Morreu. E eu, aniquilado, pulverizado pela tristeza, não pude mais suportar a solitária desolação de minha morada, na sombria e decadente cidade à beira do Reno. Não me faltava aquilo que o mundo chama riqueza. Ligéia me trouxera bem mais, muitíssimo mais do que cabe de ordinário à sorte dos humanos. Depois, portanto de poucos meses de vaguear cansativamente e sem rumo, adquiri e restaurei, em parte, uma abadia que não denominarei em um dos mais incultos e menos freqüentados rincões da bela Inglaterra. A grandeza melancólica e sombria do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, as muitas recordações tristonhas e vetustas que a ambos se ligavam tinham muito de união com os sentimentos de extremo abandono que me haviam levado àquela remota e deserta região do interior. Contudo, embora a parte externa da abadia, com sinais esverdinhados de ruína a pender em volta, apenas experimentasse pouca modificação, entreguei-me a perversidade como que pueril, e talvez com a franca esperança de encontrar alívio a minhas tristezas, a exibir dentro dela magnificência mais do que régia. Mesmo na infância, eu tomara gosto por tais fantasias, e agora elas me voltavam como uma extravagância do pesar. Ai! sinto quanto de loucura, mesmo incipiente pode ser descoberta nas tapeçarias ostentosas e fantasmagóricas nas solenes esculturas egípcias, nas fantásticas colunas, nos desenhos alucinados, nos desenhos alucinados dos tapetes enfeitados de ouro. Tornei-me um escravo acorrentado às peias do ópio, e meus trabalhos e decisões tomavam o colorido de meus sonhos. Mas não devo determe em pormenorizar tais absurdos. Permiti-me que fale só daquele aposento, maldito para sempre, aonde conduzi, como minha esposa, num momento de alienação mental - como sucessora da inesquecível Ligéia -, a loura Lady Rowena Trevanion, de Tremaine, de olhos azuis. Não há pormenor da arquitetura e decoração daquela câmara nupcial que não esteja agora presente a meus olhos. Onde estavam as almas da altiva família da noiva quando, movidas pela sede do ouro, permitiram que transpusesse o umbral dum aposento tão ataviado uma jovem e tão amada filha? Disse que me recordo minuciosamente dos pormenores do quarto, se bem que minha memória tristemente se esqueça de coisas de profunda importância; e não havia nenhuma sistematização, nenhuma harmonia, naquela fantástica exibição que cativasse a memória. O aposento achava-se numa alta torre da abadia acastelada, tinha a forma pentagonal, era bastante espaçoso. Ocupando toda a face sul do pentágono havia uma única janela, imensa folha de vidro inteiriço de Veneza, só pedaço e duma cor plúmbea, de modo que os raios do sol, ou da lua, passando através dele, lançavam sobre os objetos do interior uma luz sinistra. Sobre a parte superior dessa imensa prolongava-se a latada duma velha vinha que grimpara pelas maciças paredes da torre. O forro, de carvalho quase negro, era excessivamente elevado, abobadado e primorosamente ornado com os mais estranhos e os mais grotescos espécimes dum estilo gótico e semidruídico. Do recanto mais central dessa melancólica abóbada pendia, duma única cadeia de ouro de compridos elos imenso turíbulo do mesmo metal, de modelo sarraceno, e com numerosas perfurações, tão tramadas que dentro e fora delas se estorcia, como se dotada de vitalidade serpentina, uma continua sucessão de luzes multicores. Algumas poucas otomanas e candelabros de ouro, de forma oriental, ocupavam em redor vários lugares; e havia também leito - o leito nupcial - de modelo indiano, baixo e esculpido em ébano maciço, encimado por um dossel semelhante a um pano mortuário. Em cada um dos ângulos do quarto se erguia um gigantesco sarcófago de granito negro tirado dos túmulos dos reis em face de Lucsor, com m suas vetustas tampas cheias de esculturas imemoriais. Mas a fantasia principal, ai de mim!, se ostentava nas colgaduras do aposento . As paredes elevadas a gigantesca altura - acima mesmo de qualquer proporção - estavam cobertas, de alto a baixo, de vastos panejamentos duma pesada e maciça tapeçaria, que tinha seu similar no material empregado no tapete do soalho, bem como a cobertura das otomanas e do leito de ébano, no seu dossel e nas volutas das cortinas, que parcialmente ocultavam a janela. Esse material era um tecido riquíssimo de ouro, todo salpicado, a intervalos regulares, de figuras arabescas com cerca de trinta centímetros de diâmetro e lavradas no pano em modelos do mais negros azeviche. Mas essas figuras só participavam do caráter de arabesco quando observadas dum único ponto de vista. Graças a um processo hoje comum, e na verdade rastreável até a mais remota antiguidade, eram feitos de modo a mudar de aspecto. Para quem entrasse no quarto, tinham a aparência de simples monstruosidades, mas à medida que se avançava desaparecia gradualmente esse aspecto e passo a passo, à proporção que o visitante mudasse de posição no quarto, via-se cercado por uma infindável sucessão das formas espectrais pertencentes às superstições dos normandos ou que surgem nos sonhos pecaminosos dos monges. O efeito fantasmagórico era vastamente realçado pela introdução artificial duma forte corrente contínua de vento por trás das cortinas, dando horrenda e inquietante animação ao todo. Em aposentos tais como aquele, numa câmara nupcial tal como aquela, passava eu, com Lady de Tremaine, as horas não sagradas do primeiro mês do nosso casamento, e as passava com muito inquietação. Que minha mulher receava o violento mau-humor do meu temperamento, que me evitava e que me amava muito pouco eram coisas que eu não podia deixar de perceber. Mas isto isso me causava mais prazer que outra coisa. Eu a detestava com um ódio que tinha mais de diabólico que de humano. Minha memória retornava (oh, com que intensa saudade!) a Ligéia, a bem-amada, a augusta, a bela, a morta. Entregava-me a orgias de recordações de sua pureza, de sua sabedoria, de sua nobre, de sua etérea natureza de seu apaixonado e idolátrico amor. Agora, pois, plena e livremente, meu espírito se abrasava em chamas mais ardentes que as da própria Ligéia. Na excitação de meus sonhos de ópio (pois vivia habitualmente agrilhoado às algemas da droga) gritava seu nome em voz alta, durante o silêncio da noite, ou de dia, entre os recantos protetores dos vales, como se, pela ânsia selvagem, pela paixão solene, pelo ardor devorante de meu desejo pela morta, eu pudesse ressuscitá-la, nas sendas que abandonara nesta terra... será possível que para sempre? Cerca do começo do segundo mês do casamento, Lady Rowena foi atacada por súbita doença, da qual só lentamente veio a restabelecer-se. A febre que a consumia tornava suas noites penosas e no seu agitado estado de semi-sonolência referia-se ela a sons e a movimentos dentro e em redor do quarto da torre, e não podia deixar de atribuir senão ao desarranjo de sua imaginação ou talvez às fantasmáticas influências do próprio quarto. Veio afinal a convalescer. . . e, por fim, recobrou a saúde. Todavia mal se passara breve período, eis que segundo e mais violento acesso a lança de novo no leito de sofrimento; e deste ataque, seu corpo que sempre fora fraco, jamais se restabeleceu inteiramente. Desde essa época, sua doença tomou caráter alarmante e de recaídas mais alarmantes, desafiando ao mesmo tempo o saber e os grandes forços de seus médicos. Com o aumento da moléstia crônica, que é assim, ao que parecia, de tal modo se apoderara de sua constituição que não era mais possível erradicá-la por meios humanos, não podia eu deixar de observar idêntico aumento da irritação nervosa, de seu temperamento e da sua excitabilidade por triviais de medo. Referia-se novamente, e agora com mais freqüência e mais pertinácia, aos sons, aos mais leves sons e aos insólitos movimentos das tapeçarias, a que já antes aludira. Numa noite dos fins de setembro, chamou minha atenção, com insistência insólita, para o desagradável assunto. Ela acabava de despertar de um sono inquieto e eu estivera observando, com sentimentos mistos de ansiedade e vago terror, as contrações de sua fisionomia emagrecida. Sentei-me ao lado de seu leito de ébano, sobre uma das otomanas da Índia. Ela ergueu-se um pouco e falou num sussurro ansioso e baixo, de sons que ela então ouvia mas que eu não podia perceber. O vento corria com violência por trás das tapeçarias e eu tentei mostrarlhe (o que, confesso, eu mesmo não podia acreditar inteiramente) que aqueles sopros, quase inarticulados, e aquelas oscilações muito suaves das figuras na parede eram apenas o efeito natural daquela corrente costumeira de vento. Mas um palor mortal, espalhando-se em sua face, demonstrou-me que os esforços para reanimá-la seriam infrutíferos. Ela parecia desmaiar, e nenhum criado poderia ouvir se eu chamasse. Lembrei de onde fora guardado um frasco de vinho leve que os médicos haviam receitado e apressei-me em atravessar o quarto para ir buscá-lo. Mas, ao passar por sob a luz do turíbulo, duas circunstâncias de natureza impressionante me atraíram a atenção. Senti que coisa palpável, embora invisível, passara de leve junto de mim, e vi que jazia ali, sobre o tapete dourado, bem no meio do forte clarão lançado pelo turíbulo, uma sombra, uma sombra fraca, indecisa, de aspecto angélico, tal como o que se poderia imaginar ter a sombra de uma sombra. Mas eu estava desvairado pela excitação de uma dose imoderada de ópio e considerei essas coisas como nada, não falando delas a Rowena. Tendo encontrado o vinho, tornei a atravessar o quarto e enchi uma taça, que levei aos lábios da mulher desmaiada. Ela havia então, em parte, recuperado os sentidos, porém, e segurou o copo, enquanto eu me afundava numa otomana próxima, com os olhos presos à sua pessoa. Sucedeu então que percebi distintamente um leve rumor de passos sobre o tapete e perto do leito, e um segundo depois, quando Rowena estava a erguer o vinho aos lábios, vi ou posso ter sonhado que vi, caírem dentro da taça, como vindos de fonte invisível na atmosfera do quarto, três ou quatro grandes gotas de um líquido brilhante, cor de rubi. Se eu o vi, não o viu Rowena. Bebeu o vinho sem hesitar e eu contive-me de falar-lhe de uma circunstância que, julguei, devia, afinal de contas, ter sido apenas a sugestão de uma imaginação viva, tornada morbidamente ativa pelo ópio e pela hora da noite. Não posso, contudo, ocultar de minha própria percepção que, imediatamente após a queda das gotas de rubi, uma rápida mudança para pior se verificou na enfermidade de minha mulher; assim que, na terceira noite subsequente, as mãos de seus criados a preparavam para o túmulo, e na quarta, eu me sentei só, com seu corpo amortalhado, naquele quarto fantástico que a recebera como minha esposa. Fantásticas visões, geradas pelo ópio, esvoaçavam como sombras à minha frente. Contemplei com olhar inquieto a essa armada nos ângulos do quarto, as figuras oscilantes da tapeçaria e o enroscar-se das chamas multicoloridas do turíbulo, no alto. Meus olhos então caíram, enquanto eu recordava as circunstâncias de uma noite anterior, sobre o lugar por baixo do clarão do turíbulo, onde eu vira os fracos traços da sombra. Ela, contudo, já não estava mais ali, e, respirando com maior liberdade, voltei a vista para a pálida e rígida figura que jazia no leito. Então precipitaram-se em mim milhares de recordações de Ligéia, e então recaiu-me no coração, com a violência turbulenta de uma torrente, o conjunto daquele indizível sentimento de desgraça com que eu a contemplara, a ela, amortalhada assim. A noite avançava e ainda, com o peito cheio de amargas lembranças dela, a única e supremamente amada, eu continuava a olhar o corpo de Rowena. Podia ser meia-noite, ou talvez mais cedo ou mais tarde, pois eu não notava o decorrer do tempo, quando um soluço, baixo, suave, mas bem distinto, me sobressaltou do sonho. Senti que ele vinha do leito de ébano, do leito da morta. Prestei ouvidos, numa agonia de terror supersticioso, mas não houve repetição do som. Agucei a vista para apreender qualquer movimento do cadáver, mas perceptivelmente nada havia. Contudo, eu não podia ter sido enganado. Ouvira o ruído, embora fraco, e minha alma despertara dentro de mim. Resoluta e perseverantemente conservei a atenção fixa no corpo. Muitos minutos decorreram antes que qualquer circunstância ocorresse tendente a atirar luz sobre o mistério. Afinal, tornou-se evidente que uma coloração fraca, muito fraca e mal perceptível, corava as faces e se estendia nas pequenas veias deprimidas das pálpebras. Através de uma espécie de horror e espanto indizíveis, para os quais a linguagem humana não tem expressões suficientemente significativas, senti meu coração deixar de bater e meus membros se enrijeceram, no lugar em que estava sentado. O senso do dever, contudo, agiu para devolver-me o domínio de mim mesmo. Não podia mais duvidar de que havíamos sido precipitados em nossos preparativos, de que Rowena ainda vivia. Era necessário que se fizesse alguma tentativa; entretanto, o torreão estava completamente separado daquela parte da abadia em que residiam os criados, e não havia nenhum que se pudesse chamar; eu não podia ordenar-lhes que me ajudassem sem deixar o quarto por muitos minutos e isso não me podia aventurar a fazer. Lutei, portanto, sozinho, nas tentativas para chamar de volta o espirito que ainda pairava sobre o corpo. Em curto período tornou-se certo contudo, que uma recaída se verificara; a coloração desapareceu tanto das pálpebras como da face, deixando em seu lugar uma palidez ainda maior do que a do mármore; os lábios tornaram-se duplamente fechados e contorcidos, na espantosa expressão da morte; uma frialdade e uma viscosidade repulsivas espalharam-se rapidamente na superfície do corpo; e sobreveio imediatamente toda a costumeira e rigorosa rigidez. Caí, trêmulo, sobre a poltrona que me erguera tão sobressaltadamente e de novo me entreguei as apaixonadas recordações de Ligéia. Uma hora assim decorreu, quando (podia ser possível?), verifiquei, pela segunda vez, que certo som indeciso saía da região do leito. Prestei ouvidos, na extremidade do horror. Repetiu-se o som, era um suspiro. Correndo para o cadáver, vi, vi distintamente um tremor em seus lábios. Um minuto depois, eles se abriram, exibindo uma fileira brilhante de dentes de pérola. A estupefação agora lutava em meu corpo, com o profundo horror que até então dominara sozinho. Senti que minha vista se ensombrava, que minha razão divagava; e foi só com violento esforço que afinal consegui dominar os nervos para entregar-me à tarefa que o dever assim mais uma vez me apontava. Havia agora um brilho parcial na fronte, na face e na garganta; um calor perceptível invadia todo o corpo; havia mesmo um leve bater do coração. A mulher vivia, e com redobrado ardor entreguei-me ao trabalho de reanimá-la. Esfreguei-lhe e banhei-lhe as têmporas e as mãos e usei de todos os esforços que a experiência e não pouca leitura de assuntos médicos puderam sugerir. Mas em vão. De súbito, a cor desapareceu, a pulsação cessou, os lábios retomaram a expressão cadavérica e, um instante depois, todo o corpo se tornou de frialdade de gelo, com a coloração lívida, a rigidez intensa, os contornos cavados e todas as particularidades repulsivas de quem tinha sido, durante muitos dias um habitante do sepulcro. E imergi de novo nas recordações de Ligéia, e de novo ( será de admirar que eu estremeça ao escrevê-lo?), de novo alcançou meus ouvidos um baixo soluço vindo da região do leito de ébano. Mas por que irei pormenorizar miudamente os indescritíveis horrores daquela noite? Por que me demorarei a relatar como de tempo em tempo, até quase a hora acinzentada do alvorecer, se repetiu esse horrendo drama de revivificação? E como cada terrível recaída só o era numa morte mais profunda e aparentemente mais irremissível? E como cada agonia tinha o aspecto de uma luta com algum adversário invisível? E como a cada luta se sucedia não sei que estranha mudança na aparência pessoal do cadáver? Permiti que apresse a conclusão. A maior parte da noite terrível se fora e aquela que morrera, ,de novo, outra vez, se movera, e agora mais vigorosamente do que até então, embora erguendo-se de um aniquilamento mais apavorante, em seu extremo desamparo, do que qualquer outro. Eu já muito cessara de lutar, ou de mover-me, e permanecia rigidamente sentado na otomana, presa inerme de um turbilhão de emoções violentas, das quais o pavor extremo era talvez a menos terrível, a menos consumidora. O cadáver, repito, moveu-se, e agora mais violentamente do que antes. As cores da vida irromperam, com indomável energia, no seu rosto, os membros se relaxaram e, a não ser porque as pálpebras ainda se mantivessem estreitamente cerradas e porque os panejamentos e faxas tumulares ainda impusessem seu caráter sepulcral ao rosto, eu poderia ter sonhado que Rowena na verdade, repelira completamente as cadeias da Morte. Mas se essa idéia não foi, mesmo então, inteiramente adotada, eu não pude pelo menos duvidar mais quando, erguendo-se do leito, vacilando, com passos trôpegos, com os olhos fechados e com as maneiras de alguém perdido num sonho, a coisa amortalhada avançou ousada e perceptivelmente, para o meio do aposento. Não tremi… não me movi... pois uma multidão de inenarráveis fantasias, ligadas com o aspecto, a estatura, a maneira do vulto precipitando-se atropeladamente em meu cérebro, me paralisaram, me enregelaram em pedra. Não me movi, mas contemplei a aparição. Havia uma louca desordem em meus pensamentos, um tumulto não apaziguável. Podia, na verdade, ser Rowena viva que me enfrentava? Podia, de fato, ser verdadeiramente Rowena, a loura, a dos olhos azuis, Lady Rowena Trevanion de Tremaine? Por que, por que duvidaria disso? A faixa rodeava apertadamente a boca; mas então não podia ser a boca respirante de Lady de Tremaine? E as faces, onde havia rosas, como no esplendor de sua vida, sim, bem podiam ser elas as belas faces da viva Lady de Tremaine. E o queixo, com suas covinhas, como antes da doença, não podia ser o dela? Mas, então, ela crescera desde a doença? Quase inexprimível loucura me dominou com este pensamento? Um salto e fiquei a seu lado! Estremecendo ao meu contato, deixou cair a cabeça, desprendidos, os fúnebres enfaixamentos que a circundavam, e dali se espalharam, na atmosfera agitada pelo vento do quarto, compactas massas de longos e revoltos cabelos: e eram mais negros do que as asas de corvo da meia-noite! E então se abriram vagarosamente os olhos do vulto que estava à minha frente. Aqui estão, afinal chamei em voz alta -, nunca poderei enganar-me … Estes são os olhos grandes, negros e estranhos de meu perdido amor…de Lady. . . de "Lady Ligéia!"

1
Publicado pela primeira vez no American Mureum of Sciende, Literature and the Arts, setembro de 1838. Título original: LIGEIA.

2
diferentemente de nossas postagens anteriores de obras de Poe, nesta estamos colocando este link (clique aqui mesmo), que mostrará gravuras retiradas das obras de Joseph Glanvill

3
ilustração deste post: uma raridade ou antes, curiosidade: capa do LP com a gravação do conto Ligeia na voz do mestre Vincent Price

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