domingo, janeiro 21

Voltaire, Dicionario Filosofico, Catecismo do Japonês

BEM (TUDO ESTÁ), dicionario filosofico de voltaire

Armou-se grande estardalhaço nas escolas e até entre as pessoas que raciocinam quando, parafraseando Platão, lançou Leibnitz seu edifício do melhor dos mundos possíveis, dizendo que tudo corria às mil maravilhas (11). Afirmou ele no norte da Alemanha que Deus não poderia fazer mais que um único mundo. Platão pelo menos concedera-lhe a liberdade de fazer cinco, pela razão de cinco serem os corpos sólidos regulares: tetraedro ou pirâmide trifacial de base igual às faces, cubo, hexaedro, dodecaedro, icosaedro. Mas como o nosso mundo não tem a forma de nenhum dos seus cinco sólidos, devia conceder a Deus uma sexta forma. Deixemos em paz o divino Platão. Leibnitz, que certamente era melhor geômetra e mais profundo metafísico que ele. prestou ao gênero humano o serviço de lhe fazer ver que devemos estar contentíssimos e ter sido impossível a Deus fazer por nós mais do que fez. Que necessariamente Deus escolhera entre todos os partidos sem contradita o melhor.

- E o pecado original? - perguntavam-lhe.
- Foi o que podia ser - explicavam Leibnitz e seus amigos. Mas praceiramente escrevia ele entrar o pecado original necessariamente no melhor dos mundos.

Ora essa! Ser expulso de um lugar de delícias onde se viveria eternamente se não se tivesse comido uma maçã! Como! Chafurdado na miséria, pôr no mundo filhos miseráveis que tudo hão de sofrer, que tudo farão sofrer aos outros! Que! Padecer todas as doenças, sofrer todos os martírios, morrer na dor, e como refrigério ser assado na eternidade dos séculos! Seria esse o melhor quinhão que tinha Deus para nos dar? Nada tem de bom para nós. E em que poderia tê-lo para Deus? Compreendia Leibnitz nada ter que responder. Escreveu também maçudos livros, mas calou o ponto. Negar a existência do mal, pode negá-la rindo um Luculo refestelado na opulência, após lauto jantar libado em companhia dos amigos e da amante no salão de Apolo. Mas que ponha a cabeça à janela. Verá o que é o mundo. Repugna-me citar. É empresa de ordinário espinhosa: negligencia-se o que precede e o que segue a citação, e se expõe a querelas. Cumpre-me, todavia, citar Lactâncio, padre da igreja, que em seu capítulo 13, Da Cólera de Deus, põe estas palavras na boca de Epicuro: "Ou Deus quer abolir o mal do mundo e não pode; ou pode e não quer; ou nem pode nem quer; ou enfim quer e pode. Se quer e não pode é impotente, o que contradiz a natureza divina; se pode e não quer, é mau, o que não é menos contrário à sua natureza; se não quer nem pode, é a um tempo mau e impotente; se quer e pode (a única conjuntura que convêm a Deus) qual então a origem do mal sobre a terra?" O argumento é instante. Lactâncio respondeu muito mal, dizendo que Deus quer o mal porém nos deu a sabedoria, com que podemos alcançar o bem. A resposta é fraquíssima. Supõe que Deus não podia dar a sabedoria senão de par com o mal. Demais nós possuímos uma sabedoria agradável! A origem do mal foi sempre um abismo de que ninguém conseguiu lobrigar o fundo. Daí tantos filósofos e legisladores antigos se socorrerem de dois princípios, um do bem e outro do mal. Tifão era o princípio do mal entre os egípcios, Arimã entre os persas. Adotaram essa teologia, como se sabe, os maniqueus. Como porém anteriormente nunca falaram nem em um nem em outro desses princípios, convêm não lhes dar ouvidos. Entre os absurdos de que regurgita o mundo, não é dos menores este, que pode entrar no rol dos nossos males: imaginar dois seres todo poderosos duelando-se para ver quem d mais de si ao mundo, e acordando um convênio como os dois médicos de Molière Passe-me o emético que lhe farei a sangria. Rasteando os platonistas, pretendeu Basilídio no primeiro século da igreja que Deus acometera a tarefa de forjar o nosso mundo aos últimos de seus anjos, os quais não sendo lá muito peritos desalinhavaram as coisas como aí estão. Refuta tal fábula teológica esta objeção irretorquível: não é de Deus onipotente e onisciente confiar a construção de um mundo a arquitetos inaptos. Sentindo a objeção, preveniu-a Simão asseverando que em virtude do péssimo desempenho da incumbência Deus condenou aos infernos o anjo que presidia à oficina celeste. Por mais esturricado que esteja, contudo, a condenação desse anjo não nos cala o sofrimento. Não responde melhor à objeção a aventura de Pandora dos gregos. Inegavelmente a história da boceta que encerra todos os males e em cujo fundo jaz a esperança é uma bela alegoria. Mas essa tal Pandora, tê-la Vulcano tão somente para fazer pique a Prometeu, que havia feito um homem de barro. Os hindus não foram mais engenhosos: tendo criado o homem, Deus lhe deu uma droga que lhe asseguraria permanente saúde; o homem carregou seu asno dessa droga, o asno ficou com sede, a serpente ensinou-lhe uma fonte: enquanto o asno bebia a serpente pilhou a droga. Imaginaram os sírios que, tendo o homem e a mulher sido criados no quarto céu, quiseram comer de uma torta em vez de ambrósia, seu manjar natural. A ambrósia exalava-se pelos poros. Comendo a torta, porém, era preciso ir à secreta. O homem e a mulher pediram a um anjo lhes indicasse onde ficava tal repartição do Paraíso. - Estão vendo - disse-lhes o anjo - aquele planetinha insignificante, a uns sessenta milhões de léguas daqui? Pois é lá. - Para lá se foram, e lá os deixaram. Desde então o mundo é o que é. É o caso de perguntar aos sírios por que Deus permitiu que o homem comesse da torta e que temos nós que ver com o pato. Para nos forrarmos ao tédio, saltemos do quarto céu ao Sr. Bolingbroke. Este homem, incontestavelmente genial, deu ao célebre Pope seu plano de tudo está bem, que de fato lá vem palavra por palavra nas obras póstumas de Bolingbroke, e que anteriormente inserira Shaftesbury em seus Característicos. Leia-se o capítulo deste livro dedicado aos moralistas. Lá se encontrará: "Há muito que responder a essas lamúrias sobre defeitos da natureza. Como saiu tão impotente e falha das mãos de um ser perfeito? Mas eu nego que a natureza seja imperfeita... Sua beleza resulta das contrariedades. De perpétuo combate nasce a concórdia universal... É preciso que cada ser seja imolado a outros: os vegetais aos animais, os animais à terra... Demais não será por amor de miserável verme que as leis do poder central e da gravitação, de que decorrem o peso e o movimento dos corpos celestes, serão perturbadas. Miserável verme que, por muito bem protegido que esteja por essas leis, longe não está o dia em que por elas mesmas será reduzido a pó de traque". Bolingbroke, Shaftesbury e Pope - lapidário dos primeiros - não solvem a questão melhor que os outros. Seu tudo está bem não diz senão que o todo é regido por leis imutáveis. Quem não sabe disso? Para ninguém é novidade saber, depois dos netos, que as moscas foram feitas para ser comidas pelasaranhas, as aranhas pelas andorinhas, as andorinhas pelas pegas, as pegas pelas águias, as águias para ser mortas pelos homens, os homens para matar-se uns aos outros, ser comidos pelos vermes e em seguida pelo diabo. Eis aí ordem nítida e constante entre os animais de todas as espécies. Em tudo existe ordem. Quando se forma um cálculo em minha bexiga, verifica-se uma mecânica admirável. Pouco a pouco aparecem no sangue sucos calculosos, que se filtram nos rins, passam pelas uréteres, caem na bexiga e ali se depositam em virtude de excelente atração newtoniana; forma-se a concreção, que cresce, e eu sofro dores mil vezes piores que a morte, por mais maravilhosamente ordenado que esteja o mundo. Um cirurgião que aperfeiçoou a arte inventada por Tubalcain enterra-me um ferro agudo e trinchante no perineu, agarra o cálculo com suas tenazes: por um mecanismo necessário, a pedra se desfaz sob seus esforços. E pelo mesmo mecanismo necessário entrego a alma ao diabo em meio de tormentos medonhos. Tudo isso está bem. Tudo isso é conseqüência evidente dos inalteráveis princípios físicos. Reconheço-o. Mas, como vós, já o sabia Se fôssemos insensíveis, nada haveria que dizer a esta física. Não se trata disso, porém Pergunto-vos se não existem males sensíveis, e de onde provêem. "Não existem males" - decreta Pope em sua quarta epístola acerca do tudo está bem. "Ou, se os há particulares, compõem o bem geral". Singular bem geral, constituído de cálculos, gota, de todos os crimes, de todos os sofrimentos, da morte e da condenação. A queda do homem é o emplasto que aplicamos a todas essas doenças particulares do corpo e do espírito, que vós chamais saúde geral. Mas Shaftesbury e Bolingbroke escarnecem do pecado original. Pope não se digna mencioná-lo. É evidente que tal sistema solapa a religião cristã nos alicerces, e não explica coisa alguma. No entanto foi há pouco aprovado por muitos teólogos, que de bom grado admitem os contrários. Assim sendo, a ninguém é preciso invejar o consolo de raciocinar como melhor puder sobre o dilúvio de males que nos assoberba. Justo é conceder aos doentes sem esperança que comam o que quiserem. Chegou-se até a pretender ser esse sistema consolador. "Deus" - leciona Pope - vê com os mesmos olhos
morrer o herói e o pardal, precipitar-se na ruína um átomo ou mil planetas, formar-se um mundo ou uma bolha de sabão". Deliciosa consolação! Não sentis grande lenitivo com o decreto do sr. Shaftesbury, que diz, Deus não vai modificar suas leis eternas por um miserável verme como o homem? Convenha-se contudo ter esse verme direito de lamentar-se humildemente e lamentando-se diligenciar compreender por que tais leis eternas não foram feitas para bem de todos. O sistema do tudo está bem apresenta o autor da natureza como um déspota poderoso e mau, pouco se incomodando que seus caprichos custem a vida a milhares de seres humanos, enquanto os restantes arrastam seus dias na penúria e na dor. Longe de consolar, a teoria do melhor dos mundos possível é desesperadora. O problema do bem e do mal permanece um caos inextricável para todos aqueles que perquirem de boa fé. Para os polemistas, é um motivo de chiste: são forçados brincando com os próprios grilhões. Para o povo não pensante, é o caso de peixes transportados de um rio para um reservatório; não alimentam a menor idéia que estão ali para ser comidos na quaresma. Nada sabemos do porquê do nosso destino. Cumpre subpor ao fim de quase todos os capítulos da metafísica as duas letras dos juizes romanos, quando não entendiam uma causa: N. L., non liquet, - não é claro.

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