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Apesar das suas muitas aportações pessoais, cumpre no entanto dizer que estes tratados de vícios e virtudes eram comuns na literatura europeia da época, incluindo o tratamento dos temas de um ponto de vista não exclusivamente teórico mas do ponto de vista da sua descrição concreta, intimamente ligada às condições da vida prática. Com efeito, o nosso rei possuia na sua biblioteca uma obra deste tipo, o Caderno das Confissões de João Calado, citando ainda outros dois, o Pomar das Virtudes, de André Paz, e o Livro das Confissões de Martim Perez, para além de muitos outros que então proliferavam na literatura europeia. É o estudo concreto destas questões que abre portas ao exame minucioso da consciência individual, onde os pecados e os sentimentos se manifestam na diversidade das circunstâncias. No caso de D. Duarte, ficaram célebres as suas análises dos sentimentos da tristeza e da saudade, onde revelou inusitado poder introspectivo.
Neste último caso, transformou a saudade em problema do espírito, surgindo-lhe esta como um sentimento indizível, devendo cada qual consultar o seu coração «no que já por desvairados feitos tem sentido», dado que «nos livros nada vem». Trata-se de um sentimento que parte do «coração» mas que é autónomo e superior aos seus efeitos, sejam eles a tristeza, o nojo, o prazer, o desprazer ou o aborrecimento, podendo assim gerar efeitos contraditórios, pois que a variabilidade é um atributo do coração. Logo, se as suas manifestações têm um conteúdo psicológico preciso, como é o caso da tristeza, a saudade em si é um problema do espírito que não se define na base de um conceito preciso, devendo antes cada um proceder interrogativamente com recurso à experiência interior.
De inegável valor humano, sobretudo pela autenticidade do testemunho, é também a análise que nos legou do «humor merencórico», descrevendo-nos com grande realismo as várias fases da depressão que o acometeu quando seu pai lhe legou os negócios do reino, após a sua partida para Ceuta. No Leal Conselheiro podemos ainda encontrar uma interessante reflexão do autor sobre o seu ofício de rei, muito na linha do Regimento dos Princípes de Frei Gil de Roma, ao qual atribui um fundamento ético e uma finalidade espiritual, assente nas quatro virtudes cardinais e nas três virtudes teologais.
Obras Leal Conselheiro e Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela, edição crítica de J. Piel, Lisboa, 1942-1944; Obras dos Princípes de Avis, Porto, 1982. Bibliografia Sílvio Lima, Ensaios sobre o Desporto, Lisboa, 1937; Francisco da Gama Caeiro, A Cultura Portuguesa no último Quartel do século XIV; Afonso Botelho, D. Duarte, Lisboa, Verbo, Colecção Pensamento Português, 1993 (contém bibliografia exaustiva); id., D. Duarte e a fenomenologia da saudade, Lisboa, 1951; id., Andar Direito, Lisboa, 1951; Pinharanda Gomes, «D. Duarte do "Sootil Entender"», Cultura Portuguesa, nº2, Janeiro-Fevereiro de I982; Manuel Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, Lisboa, 1964; Costa Pimpão, História da Literatura Portuguesa, Coimbra, 1947; Joaquim de Carvalho «Cultura Filosófica e Científica» História de Portugal (chamada de Barcelos), Lisboa, 1942. por Pedro Calafate
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