sábado, julho 29

Poe, por Baudelaire

(nota preliminar de pw: sabe-se da lucidez francesa em adotar Poe logo a primeira hora, e aqui trazemos um depoimento de Baudelaire sobre o assunto. mas devo lembra que a reciproca existiu, uma vez que um dos melhores personagens de Poe, o Dupin, era frances)

O HOMEM E A OBRA Charles Baudelaire É UM PRAZER bem grande e bem útil comparar os traços fisionômicos dum grande homem com suas obras. As biografias, as notas sobre os costumes, os hábitos, o físico dos artistas e dos escritores sempre suscitaram uma curiosidade bem legitima. Quem não procurou algumas vezes a acuidade do estilo e a nitidez das idéias de Erasmo, no recorte acentuado de seu perfil, o calor e o tumulto de suas obras na cabeça de Diderot e na de Mercier, onde um pouco de fanfarronada se mistura à bonomia; a ironia obstinada do sorriso persistente de Voltaire, sua careta de combate, o poder de comando e de profecia no olhar lançado para o horizonte, e a sólida figura de José de Maistre, águia e boi ao mesmo tempo? Quem não se deu ao engenhoso trabalho de decifrar a Comédia Humana na fronte e no rosto potentes e complicados de Balzac? Edgar Poe era de estatura um pouco abaixo da média, mas todo o seu corpo era solidamente constituído. Tinha pés e mãos pequenos. Antes de vir a ter sua compleição combalida, era capaz de maravilhosas proezas de força. Dir-se-ia que a Natureza, e creio que isso já foi muitas vezes observado, torna a vida bastante dura àqueles de quem deseja extrair grandes coisas. De aparência muitas vezes mesquinhas, são talhados como atletas, tão bons para o prazer como para o sofrimento. Balzac, assistindo aos ensaios de Recursos de Quinola, dirigindo-os e desempenhando ele próprio todos os papéis, corrigia provas de seus livros; ceava com os atores, e quando toda a gente fatigada ia dormir, entregava-se ele de novo vivamente ao trabalho. Todos sabem que enormes excessos de insônia e de sobriedade praticou ele. Edgar Poe, na mocidade, se distinguira bastante em todos os exercícios de destreza e de força; isto condizia um pouco com seu talento: cálculos e problemas. Um dia apostou que partiria dum dos cais de Richmond, que subiria a nado umas sete milhas o rio James e voltaria a pé no mesmo dia. E o fez. Era um dia ardente de verão. Nem por isso passou lá tão mal. Aspecto, gestos, marcha, posição da cabeça, tudo o assinalava, quando se achava ele nos seus bons dias, como um homem de alta distinção. Era marcado pela Natureza, como essas pessoas que, num grupo, no café, na rua, atraem o olhar do observador e o preocupam. Se jamais a palavra "estranho", de que tanto se abusou nas descrições modernas, se aplicou bem a alguma coisa, foi certamente ao gênero de beleza de Poe. Suas feições não eram vultosas, mas bastante regulares, a tez dum moreno-claro, a fisionomia triste e distraída, e se bem que não a apresentasse, nem o tom da cólera nem o da insolência tinham algo de penoso. Seus olhos, singularmente belos, à primeira vista pareciam dum cinzento sombrio; melhor examinados, porém, mostravam-se gelados por um leve tonalidade violeta indefinível. Quanto à fronte era majestosa não que lembrasse as proporções ridículas que os maus artistas inventam, quando, para lisonjear o gênio, transformam-no em hidrocéfalo, mas dir-se-ia que uma força interior desbordante impeli para diante os órgãos da perfeição e da construção. As partes que os craniologistas atribuem o sentido do pitoresco não estavam no entanto, ausentes, mas pareciam deslocadas, oprimidas, acotoveladas pela tirania soberba e usurpadora da comparação, da construção e da casualidade. Sobre essa fronte tronava também, num orgulho calmo, o sentido da idealidade e do belo absoluto, o senso estético por excelência. Malgrado todas essas qualidades, aquela cabeça não apresentava um conjunto agradável e harmonioso. Vista de lado, feria e dominava a atenção pela expressão dominadora inquisitorial da fronte, mas o perfil revelava certas deficiências havia uma imensa massa de crânio, adiante e atrás, e medíocre quantidade no meio; afinal uma enorme potência animal e intelectual, e uma falha no lugar da venerabilidade e das qualidades afetivas. Os ecos desesperados da melancolia, que atravessam as obras de Poe, têm um acento penetrante, é verdade, mas é preciso diz também que é uma melancolia bem solitária e pouco simpática para o comum dos homens. Tinha Poe os cabelos negros, semeados de alguns fios brancos grosso bigode eriçado, que ele esquecia de pôr em ordem e alisar devidamente. Trajava com bom-gosto, mas negligentemente, com um cavalheiro que tem bem outras coisas que fazer. Suas maneiras eram perfeitas, muito polidas e cheias de segurança. Mas sua conversação merece menção especial. A primeira vez que interroguei um americano a esse respeito, respondeu-me ele, rindo muito: "Oh! oh! ele tinha uma conversa que não era lá muito consecutiva!" Depois de algumas explicações, compreendi que Poe dava vastas pernadas no mundo das idéias, como um matemático que fizesse um demonstração diante de alunos já bem fortes em Matemática, que ele monologava muito. Na verdade, era uma conversa essencialmente nutritiva. Não era um beau parleur, e aliás sua palavra como seus escritos, tinha horror à convenção; mas um vasto sabe o conhecimento de várias línguas, sólidos estudos, idéias colhidas em vários países faziam dessa palavra um ensinamento incomparável . Enfim, era um homem para ser frequentado pelas pessoas que medem sua amizade pelo ganho espiritual que podem auferir duma convivência. Mas parece que Poe tenha sido pouco severo na escolha de seu auditório. Que seus auditores fossem capazes de compreender suas abstrações sutis, ou admirar as gloriosas concepções, que rasgavam continuamente com seus clarões o céu sombrio de seu cérebro, era coisa que não lhe causava preocupação. Vou procurar dar uma idéia do caráter geral que domina as obras de Edgar Poe. Poe se apresenta sob três aspectos: crítico, poeta e romancista; e mais, no romancista há um filósofo. Quando foi chamado para dirigir o Mensageiro Literário do Sul (Southern Literary Messenger), ficou estipulado que ganharia 2500 francos por ano. Em troca de tão medíocres honorários, deveria encarregar-se da leitura e escolha dos trechos destinados à composição do número do mês, e da redação da parte chamada editorial, isto é, da análise de todas as obras aparecidas e da apreciação de todos os fatos literários. Além disso, contribuiria muitas vezes com um conto ou uma poesia. Durante dois anos, pouco mais ou menos, exerceu essa tarefa. Graças à sua ativa direção e à originalidade de sua critica, o Mensageiro Literário atraiu dentro em pouco todas as atenções. Tenho, diante de mim, a coleção dos números desses dois anos. A parte editorial é considerável; os artigos são bastante longos. Muitas vezes, no mesmo número, encontra-se a resenha dum romance, dum livro de poesia, dum livro de medicina, de física ou de História. Todas são feitas com o maior cuidado, e denotam no autor um conhecimento das diversas literaturas e uma aptidão científica, que recordam os escritores franceses do século XVIII. Parece que durante seus precedentes tempos miseráveis, Edgar Poe havia posto o seu tempo a juros e agitado um ror de idéias. Há ali uma coleção notável de apreciações criticas dos principais autores ingleses e americanos, muitas vezes de memórias francesas. Donde partia uma idéia, qual era sua origem, seu objetivo, a que escola pertencia ela, qual era o método do autor, salutar ou perigoso, tudo isso era nitidamente, claramente, rapidamente explicado. Se Poe atraiu fortemente as atenções sobre si, arranjou também numerosos inimigos. Profundamente penetrado por suas convicções, fez guerra infatigável aos falsos raciocínios, às imitações bobas, aos barbarismos e a todos os delitos literários, que se cometem diariamente nos jornais e nos livros. Desse lado, nada havia a reprochar-lhe. Pregava com o exemplo. Seu estilo é puro, adequado às idéias, dando delas a expressão exata. Poe é sempre correto. Fato bastante assinalável é que um homem de imaginação tão erradia e tão ambiciosa seja ao mesmo tempo tão amoroso das regras, e capaz de análises estudiosas e de pacientes pesquisas. Dir-se-ia uma antítese feita carne. Sua glória de crítico prejudicou bastante sua fortuna literária. Muitos se quiseram vingar. Não houve censuras que não lhe lançassem mais tarde em rosto, à medida que sua obra se avolumava. Toda a gente conhece essa longa e banal ladainha: imoralidade, falta de ternura, ausência de conclusões, extravagância, literatura inútil. A critica francesa jamais perdoou a Balzac «o Grande homem provinciano em Paris ». Como poeta, Edgar Poe é um homem à parte. Representa quase sozinho o movimento romântico do outro lado do Oceano. É o primeiro americano que, propriamente falando, fez do seu estilo uma ferramenta. Sua poesia, profunda e gemente, é, não obstante, trabalhada, pura, correta e brilhante, como uma jóia de cristal. Edgar Poe amava os ritmos complicados, e, por mais complicados que fossem, neles encerrava uma harmonia profunda. Há um pequeno poema seu, intitulado "Os Sinos" , que é uma verdadeira curiosidade literária; traduzível, porém, não o é. "O Corvo" logrou vasto êxito. Segundo afirmam Longfellow e Emerson, é uma maravilha O assunto é quase nada, e é uma pura obra de arte. O tom é grave e quase sobrenatural, como os pensamentos da insônia; os versos caem um a um, como lágrimas monótonas. No "País dos Sonhos" , tentou descrever a sucessão dos sonhos e das imagens fantásticas que assaltam a alma quando o olho corpóreo está cerrado. Outros poemas como "Ulalume" e "Annabel Lee" gozam de igual celebridade. Mas a bagagem poética de Poe é diminuta. Sua poesia, condensada e laboriosa, custava-lhe, sem dúvida, muito esforço e ele necessitava muitas vezes de dinheiro, para que se pudesse entregar a essa dor voluptuosa e infrutífera. Como novelista e romancista, Edgar Poe é único no seu gênero, como Maturin, Balzac, Hoffmann, cada um no seu. Os variados trabalhos que espalhou em revistas foram reunidos em dois grupos, um, Contos do Grotesco e Arabesco, o outro Contos de Edgar A. Poe, edição Wiley & Putnam. Forma tudo um total de setenta e dois trabalhos mais ou menos. Há ali bufonadas violentas, puro grotesco, aspirações desenfreadas para o infinito e uma grande preocupação pelo magnetismo. Nele é atraente toda entrada em assunto, sem violência, como um turbilhão. Sua solenidade surpreende e mantém o espírito alerta. Sente-se, desde o princípio, que se trata de algo grave. E lentamente, pouco a pouco, se desenrola uma estória, cujo interesse inteiro repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto, sobre uma hipótese audaciosa, sobre uma dosagem imprudente da Natureza no amálgama das faculdades. O leitor, tomado de vertigem, é constrangido a seguir o autor em suas arrebatadoras deduções. Nenhum homem jamais contou com maior magia as exceções da vida humana e da natureza; os ardores de curiosidade da convalescença; o morrer das estações sobrecarregadas de esplendores enervantes, os climas quentes, úmidos e brumosos, em que o vento do sul amolece e distende os nervos, como as cordas de um instrumento, em que os olhos se enchem de lágrimas, que não vêm do coração; a alucinação deixando, a princípio, lugar à dúvida, para em breve se tornar convencida e razoadora como um livro; o absurdo se instalando na inteligência e governando-a com uma lógica espantosa; a histeria usurpando o lugar da vontade, a contradição estabelecida entre os nervos e o espírito, e o homem descontrolado, a ponto de exprimir a dor por meio do riso. Analisa o que há de mais fugitivo, sopesa o imponderável e descreve, com essa maneira minuciosa e científica, cujos efeitos são terríveis, todo esse imaginário que flutua em torno do homem nervoso e o impele para a ruína. Geralmente Edgar Poe suprime as coisas acessórias, ou pelo menos não lhes dá senão um valor mínimo. Graças a esta sobriedade cruel, a idéia geratriz se torna mais visível e o assunto se recorta ardentemente, sobre esses segundos planos nus. Quanto a seu método de narração, é simples. Abusa do eu com uma cínica mononia. Dir-se-ia que está tão certo de interessar, que pouco se preocupa em variar seus meios. Seus contos são quase sempre narrativas ou manuscritos do personagem principal. Quanto ao ardor com que trabalha muitas vezes no que é horrível, observei em muitos homens que isso se deve a uma imensa energia vital sem exercícios, por vezes a uma castidade obstinada e também a uma profunda sensibilidade recalcada. A volúpia sobrenatural, que o homem pode experimentar em ver correr seu próprio sangue, os movimentos bruscos e inúteis, os grandes gritos lançados ao ar quase involuntariamente são fenômenos análogos. A dor é um alívio para a dor, a ação repousa do repouso. Nos contos de Poe jamais se encontra amor. Pelo menos, "Ligéia " e " Eleonora" não são propriamente falando, estórias de amor, sendo outra a idéia principal sobre a qual gira a obra. Talvez acreditasse ele que a prosa não é a linguagem à altura desse estranho e quase intraduzível sentimento; porque suas poesias, em compensação, estão fartamente saturadas de amor. A divina paixão nelas aparece magnífica constelada, e sempre velada por uma irremediável melancolia. Nos seus artigos, fala algumas vezes de amor como se uma coisa cujo nome faz a pena estremecer. No " Domínio de Arnheim " afirmará que as quatro condições elementais da felicidade são: a vida ao ar livre, o amor duma mulher, o desprendimento de qualquer ambição e a criação dum Belo novo. O que corrobora a idéia da Sra. Frances Osgood referente ao respeito cavalheiresco de Poe pelas mulheres é que, malgrado seu prodigioso talento para o grotesco e para o horrível, não há em toda a sua obra uma única passagem que se refira à lubricidade ou mesmo aos prazeres sensuais. Seus retratos de mulheres são, por assim dizer, aureolados; brilham em meio dum vapor sobrenatural e são pintados à maneira enfática dum adorador. - Quanto aos pequenos episódios romanescos, há motivo para espanto que uma criatura tão nervosa, cuja sede do Belo era talvez o traço principal, tenha por vezes, com ardor apaixonado, cultivado a galantaria esta flor vulcânica e almiscarada, para a qual o cérebro fervente dos poetas é terreno predileto? Em Edgar Poe não há choraminguices enervantes, mas por toda a parte incessantemente, o ardor infatigável pelo ideal. Como Balzac que morreu triste talvez triste por não ser um puro sábio, tem sanhas de ciência. Escreveu um Manual do Concologista. Tem, como os conquistadores e os filósofos, uma aspiração arrebatadora para a unidade; assimila as coisas morais às coisas físicas. Dir-se-ia que procura aplicar à literatura os processos da filosofia, e à filosofia o método da álgebra. Nessa incessante ascensão para o infinito, perde-se um pouco o fôlego. O ar fica rarefeito nessa literatura como num laboratório. Contempla-se aísem cessar a glorificação da vontade, aplicando-se à indução e à análise. Poe parece querer arrancar a palavra aos profetas e atribuir-se o monopólio da explicação racional. Assim, as paisagens que servem por vezes de fundo a suas ficções febris são pálidas como fantasmas. Poe , que não partilhava das paixões dos outros homens, desenha árvores e nuvens que se assemelham a sonhos de nuvens e de árvores, ou antes, que se assemelham a seus estranhos personagens, agitadas, como eles, por um calafrio sobrenatural e galvânico. Os personagens de Poe, ou melhor, o personagem de Poe, o homem de faculdades superagudas, o homem de nervos relaxados, o homem cuja vontade ardente e paciente lança um desafio às dificuldades, aquele cujo olhar está ajustado, com a rigidez duma espada, sobre objetos que crescem, à medida que ele os contempla - é o próprio Poe. - E suas mulheres, todas luminosas e doentes, morrendo de doenças estranhas e falando com uma voz que parece música, são ele ainda; ou pelo menos, por suas aspirações estranhas, por seu saber, por sua melancolia incurável, participam fortemente da natureza de seu criador. Quanto à sua mulher ideal, à sua Titânide, revela-se em diferentes retratos, esparsos nas suas poesias pouco numerosas, retratos, ou antes, maneiras de sentir a beleza, que o temperamento do autor aproxima e confunde numa unidade vaga mas sensível, e onde vive mais delicadamente talvez que em qualquer parte esse amor insaciável do Belo, que é seu grande titulo, isto é, a soma de seus títulos à afeição e ao respeito dos poetas. (ilustração de Gustave Doré para The Raven - Corvo)

NOTA
PRELIMINAR SOBRE POE E O CONTO POLICIAL Estórias de crimes e roubos misteriosos sempre foram do agrado popular desde a mais remota antigüidade. Entre os contadores populares de estórias nos mercados e praças públicas sempre havia um conto cujos heróis eram criminosos ou ladrões astutos e inteligentes, muito embora acabassem sendo descobertos. O famoso egiptólogo Maspero, no seu livro Contos Populares do Egito Antigo, apresenta um velho conto em que o tema é o roubo misterioso dos tesouros do Rei Rampsinitos e que pode ser admitido como o primeiro exemplar de conto policial. As Mil e Uma Noites estão cheias de estórias de ardis e crimes. Nos começos do século XIX, juntamente com o chamado romance noir, romance de mistérios, fantasmas, crimes e aventuras fantásticas, o romance em que se contam crimes e perseguições a criminosos constitui uma literatura copiosa e de qualidade inferior, digo logo. Godwin, na Inglaterra, e Balzac, na França, fornecem amostras desse gênero tão do gosto do grande público. É essa também a época dos chamados romances-folhetins, que os jornais publicavam seriadamente em seus rodapés e nos quais ocorriam as aventuras mais intrincadas e mirabolantes. Foi, porém, Edgar Poe quem deu dignidade intelectual a essas estórias de crimes e de mistérios, traçando-lhes as regras gerais e princípios que ainda vigoram e que poucas inovações receberam. De modo que os críticos concordam geralmente em apontá-lo como o verdadeiro criador do conto policial do romance cuja finalidade é a descoberta do autor de um crime envolto em mistério. Sua primeira obra no gênero foi o conto "Os Crimes da Rua Morgue", publicado pela primeira vez no Graham's Magazine, de abril de 1841. Nele surge o tipo que irá ser o pai de toda uma numerosa geração de policiais ou detetives nas literaturas de todo o mundo. Inspirado talvez no Zadig de Voltaire, que mostrara capacidade dedutiva na observação de rastros de animais, Poe imagina um homem de notável inteligência, de espírito agudo e cultivado, que se utiliza da teoria do cálculo das probabilidades de Laplace e da análise matemática para destrinçar casos misterioso e complicados. Até então o herói do romance folhetinesco era o próprio criminoso ou o policial (aliás ex-criminoso), como no caso Vidocq, de acordo com uma tendência popular que acha prazer quando vê a policia ser surrada por alguém do povo. Em Os Miseráveis, de Vítor Hugo, romance publicado em 1862, João Valjean o criminoso simpático e Javert é o policial odiento e cruel. Edgar Poe faz de seu detetive uma criatura simpática, e para que o leitor, não o rejeite não faz dele um polícia profissional, mas um simples amador que revela, aliás, um desdém profundo pela polícia oficial e seus métodos e processos. Esse francês, Dupin, a quem ele favorece com tantas qualidades intelectuais, culturais e sociais, será assim o protótipo do detetive amador e imitado por centenas de outros. Não é um homem comum: é culto, é um esteta, é um poeta, é cientista, é um matemático, é um intuitivo, antes de tirar conclusões dos fatos que tem à mão. Para melhor fazê-lo desenvolver seus raciocínios, dâ-lhe Poe um interlocutor de menores capacidades intelectuais, processo que mais tarde será utilizado por Conan Doyle, quando põe o seu Sherlock Holmes a dialogar com seu amigo, o médico Dr. Watson, e por outros autores de romances policiais como Hornung, Agatha Chrístie, etc. Deve-se também a Poe o que chamaremos a "receita" do romance policial, tal como vem sendo preparada até hoje: a inversão e baralhamento dos fatos, a investigação a partir do crime até encontrar o criminoso, a possibilidade de várias pistas e de vários criminosos, o destrinçamento de todas as complicações até a descoberta final do verdadeiro criminoso. O efeito teatral do suspense, tão comum aos romances policiais e levado ao cinema com tanta habilidade por Alfred Hitchcock, é também um dos ingredientes da "receita" de Poe. Após o êxito do seu primeiro conto policial, escreve, em 1842, "O Mistério de Maria Roget ", baseado num crime ocorrido nas vizinhanças de Nova York, mas que ele situa em Paris. Aqui também cabe ao detetive amador Dupin a descoberta do crime. Mais tarde, em 1845, publica o terceiro conto da série que tem Dupin como protagonista, intitulado "A Carta Furtada". Desta década são ainda " O Escaravelho de Ouro", em que a descoberta do tesouro enterrado deve se a um tal Legrand, tão ágil na arte de deduzir como Dupin, e o conto "Tu és o homem ", em que, muito embora não haja um detetive, cabe ao próprio narrador, mediante um ardil, levar o criminoso a confessar o seu crime, salvando um inocente contra o qual se acumulavam as mais irrefutáveis provas. O discípulo imediato de Poe na França foi Emile Gaboriau com o seu policial Lecoq, na Inglaterra foi Conan Doyle, criando o seu universalmente famoso Sherlock Holmes copiado claramente do Dupin de Poe. O gênero policial é hoje um dos mais florescentes em países como a Inglaterra, os Estados Unidos, a França, a Alemanha. Dupin está sempre vivo nos personagens que o imitam e o reencarnam no Sherlock de Conan Doyle, no Rouletabille de Gaston Leroux, no Raffles de Hornung, no Juve de Souvestre e Allain, no Nick Carter de Dey, no Nero Wolf de Rex Stout, no Lord Peter de Dorothy Sayers, no Philo Vance de Van Dine, no Charlie Chan de Biggers, no Mr. Motto de Marquand, no Hercule Poirot de Agatha Christie, no Wens de Steeman, no Bulldog-Drummond de Sapper, no Perry Mason de Gardner, no Nayland Smith de Sax Rohmer, no Padre Brown de Chesterton, no Maigret de Simenon e em centenas de outros que fervilham nos milhões de romances policiais que se publicam em todo o mundo. Pouco se tem acrescentado à sua receita de conto ou romance policial. Por isso, Léon e Frédéric Saisset puderam afirmar no livro Les Histoires Extraordinaires d'Edgar Poe, em que historiam o amplo êxito obtido por seus contos, que o romance policial de observação deriva de "Os Crimes da Rua Morgue"; o romance policial psicológico, de "A Carta Furtada" e o romance policial científico, de "O Mistério de Maria Roget" (Oscar Mendes)

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