domingo, agosto 13

Bem, este texto ai embaixo não é meu, off course. Mas coloco-o aqui porque o; achei interessante e porque me lembra, vagamente, noções semiológicas que percebi em "O Discurso dos Cabelos", de Pasolini, e "O Pensamento Lombar", de Eco. Também me lembra um possivel discurso que está, historica e desde muito tempo ligado às roupas pretas como portadoras do discurso da nobreza, da inteligencia e do luto/desafio (veremos oportunamente). Como acho que um dia ainda vou conseguir reunir estes outros dois textos, postando este aqui acho que ele ficará seguro para intervenções futuras. Os créditos do autor estão abaixo.
=========================================================================
ISSN: 1646-3137
Labcom
A METALINGUAGEM DAS ROUPAS A METALINGUAGEM DAS ROUPAS
Gilson
Monteiro
* Professor da Universidade do Amazonas,
Doutorando da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).


INTRODUÇÃO

A simbologia das roupas varia de cultura para cultura. Para o homem moderno, então, representa uma espécie de espelho de si mesmo. Quando o consumidor decide comprar uma roupa, ele não está apenas comprando alguns pedaços de panos bem costurados. Ele está comprando sua própria alma, para se refletir no outro. Está comprando também toda a representação imagética de grupo que a vestimenta representa. Esse processo de reflexo de si mesmo nos objetos comprados não se refere apenas às peças de vestuário. "Vender um produto, antes de mais nada, é trabalhar para que o possível comprador crie imagens interiores à simples menção do nome do produto". O consumidor, então, no processo de compra, estaria comprando uma imagem que ele faz de si próprio, refletida no que se poderia chamar de seu objeto de desejo. No caso da roupa, essa simbologia é maior na sociedade moderna, muito embora, as mudanças sejam rápidas e a representatividade de uma roupa, como moda, não dure mais que uma estação. No entanto, essas mudanças, de certa forma, se alimentam de idéias anteriores, o que na Literatura, por exemplo, se chama de intertextualidade. No caso da moda, essa realimentação é pura metalinguagem.

De uma forma geral, a roupa sempre representou algo de mitológico e uma marca da separação da sociedade em castas e classes. A roupa, tanto modernamente quanto antigamente, serve para distinguir a classe social a qual o indivíduo pertence. Carrega todo o significado do papel que o indivíduo representa dentro da sociedade. Modernamente, não representa tanto uma classe social, mas, é uma forma de distinguir o grupo ao qual o indivíduo pertence. À primeira vista, a representação dos papéis é simbolizada exatamente pelo modo de se vestir, muito embora não haja nenhuma garantia de que o uso de uma roupa considerada da "moda" possa assegurar que a personalidade de quem a usa está de acordo com o papel que a pessoa representa ao usar determinada roupa. A roupa "elegante" está sempre associada às classes sociais mais abastadas, mais educadas e mais finas, ao passo que a roupa mais simples representa um cidadão da mesma forma: mais simples, menos educado, com menos dinheiro.

Este trabalho pretende mostrar que, com algumas variações simbólicas, as roupas representam, através dos tempos, exatamente uma opção ideológica, a divisão de classes, e a opção social, de grupo, mostrada destacadamente através do objeto de ostentação de quem as usa. Para sacramentar essa divisão e o caráter dessa simbologia, a propaganda seria um objeto criador desse desejo de diferenciação, próprio do ser humano. Logo, a compra de uma roupa não é apenas uma decisão solitária do consumidor. Carrega enorme simbologia e representa nitidamente mais uma comunicação, mais um sinal de quem as usa dentro desse processo global de comunicação dos seres humanos. Ao entrar em uma butique, em uma loja de roupas, o consumidor não busca apenas proteger o corpo. Não quer apenas um objeto útil. Quer a diferenciação que essa roupa pode dar e a mensagem que pode transmitir através dela. "O traje manifesta o pertencer a uma sociedade caracterizada: clero, exército, marinha, magistratura etc. Tirá-lo é, de certa forma, renegar essa relação"(Chevalier, Gheerbrant, 1991). A sociedade moderna vive uma verdadeira corrida contra o relógio: a corrida da atualização, da moda. No entanto, essa corrida não retirou da roupa, do vestuário, seu significado de marcar, de forma clara, uma divisão em grupos e de se realimentar dos significados do passado, no que poderíamos chamar de retroalimentação metalingüística, ou seja, uma forma de recuperar o tempo e reinterpretá-lo. Determinadas peças do vestuário, tinham significados bem diversos dos atuais. Mas, o que pretendo mostrar é que, na essência, os significados sofrem variações mas mantêm um núcleo praticamente imutável, que, poderíamos dizer, é o passado que volta. Modificado, mas volta, contrariando as previsões de Karl Marx de que a história só se repete como tragédia. No caso do vestuário, nos parece que a tragédia não acontece, ao contrário, retroalimenta.

O CÓDIGO QUE UNE E DIVIDE

A roupa sempre representou um traço da individualidade. É uma forma de a pessoa demonstrar que é única, que pode se diferir das outras em função do que usa. Através dos tempos, o traje carregou essa representação de classe, de casta social: É como se a pessoa dissesse: eu pertenço à determinada classe, à determinada casta, ao ostentar uma roupa. Mesmo dentro dessas castas, a roupa sempre teve uma caráter de marcar uma distinção, ou seja, é capaz de marcar a criação de subgrupos dentro de um grupo. Representa também o desapego entre o mundo real e o mundo imaginado pela pessoas: "A vestimenta dos monges budistas não evoca apenas o desapego ao mundo, o pó e os trapos recolhidos ao acaso nos caminhos. A investidura do patriarca zen se faz através da transmissão da túnica, a kasaya." ( Chevalier, Gheerbrant, 1991). A roupa era, em verdade, era um objeto de sacralização e tinha significados diversos, dependendo de cada cultura: "As vestimentas sacerdotais hebraicas lembravam as correspondências macro-microcósmicas, e sua franjas a chuva da graça. Com maior freqüência, faz-se uso de um traje hierático, e observou-se que em países muçulmanos esse hieratismo estendia-se ao traje civil. O traje hierático é, por excelência, o da peregrinação, muitas vezes uma roupa branca, no Islã, no Irã xiita, no Japão, budista ou xintoísta. O peregrino devia trocar a sua roupa habitual por uma roupa especial que o sacralizasse."(Chevalier, Gheerbrant, 1991). Em outras culturas, a roupa era símbolo de nobreza, graça e harmonia e demonstrava a retidão de espírito de quem as usava: "O Li-ki dá a maior importância ao simbolismo da roupa, que condiciona o porte nobre e as virtudes daquele que a veste: é feita de doze faixas, como o ano de doze meses (harmonia); as mangas são redondas (graça de movimento); a costura dorsal é reta (retidão); a bainha, horizontal (paz do coração)" (Chevalier, Gheerbrant, 1991). A roupa, para o homem moderno, no fundo, representa esse mesmo manto da salvação. É uma forma de o homem demonstrar que pertence a determinada classe social ou grupo. Demonstra, através das roupas, o quanto é bem sucedido, o quando soube e pôde se destacar dos demais. A roupa é símbolo de status e diferenciação social e da diferenciação dentro do próprio grupo. Através dos tempos, seus significados mudaram mas o requinte social que representa está cada vez mais presente e serve como apelo de vendas. Os profissionais de marketing exploram exatamente essa simbologia da vestimenta, que representa não-apenas um atributo exterior ao ser humano. Ao contrário, a roupa é uma expressão da realidade social e fundamental de cada ser humano. Por isso, os apelos de venda são dirigidos, em sua maioria, às pessoas que buscam esse valor percebido, que não existe intrinsecamente nas roupas, mas na mente de quem as compra. No fundo, para essas pessoas a roupa é uma representação do próprio ser humano. "A roupa - própria do homem, já que nenhum outro animal a usa - é um dos primeiros indícios de uma consciência da nudez, de uma consciência de si mesmo, da consciência moral. É também reveladora de certos aspectos da personalidade, em especial do seu caráter influenciável (modas) e do seu desejo de influenciar. O uniforme, ou uma peça determinada do vestuário (capacete, boné, gravata etc.) indica a associação a um grupo, atribuição de uma missão, um mérito..." (Chevalier, Gheerbrant, 1991). Roland Barthes, no livro O Sistema da Moda, diz que a ideologia da moda trata-se de uma significação recebida mas não lida: "Ao invés de ser decifrada claramente pela leitora de Moda ela se impões através de sua nebulosidade, de sua imprecisão maciça. Este significado é constituído por uma visão a um tempo eufórica e sincrética do mundo, na própria medida em que tolera a coexistência de contrários" (Mallac, Eberdach, 1977). Nosso objeto de análise está justamente dentro do que Barthes, em seu clássico livro sobre Moda, chamou de Sistemas dos conjuntos B, ou seja, os enunciados com significados implícitos. Esses significados implícitos são explorados exatamente pela publicidade de moda para levar o consumidor a tomar sua decisão de compra, pois, nesses sistemas dos conjuntos B encontram-se os significados de ascensão de classe social e a representatividade de castas que as roupas carregam ao longo dos séculos. Mesmo porque, a questão da utilidade da roupa foi deixada de lado há anos. "... no nosso vestuário, o que serve realmente para cobrir ( para proteger do calor ou do frio e para ocultar a nudez que a opinião pública considera vergonhosa) não supera os cinqüenta por cento" (Eco, 1989). O próprio Eco completa: "a distinção entre dizer que e servir para é mínima", muito embora, para a maioria dos consumidores de roupas, o dizer que é muito mais importante na tomada de decisão de compra do que o servir para." Porém, essa distinção mínima de que nos fala Umberto Eco serve também, para, no decorrer dos anos, as roupas se realimentarem de seus significados e serem classificadas como nítido exemplo de metalinguagem. A mitra, por exemplo, não é um tipo de chapéu que serve apenas para proteger da chuva. É a síntese da afirmação: "sou um bispo". "A funcionalidade física adquire um valor comunicativo a tal ponto que se torna acima de tudo um sinal", nos diz Umberto Eco. E complementa: "Basta o exemplo da pele envergada pelo nosso homem primitivo por razões especialmente funcionais. Tinha frio e cobria-se, não há dúvida. Mas também, não há dúvida que no espaço de poucos dias depois da invenção do primeiro trajo de peles, se terá criado a distinção entre os bons caçadores, munidos das suas peles, conquistadas pelo preço de um dura luta, e outros, os inaptos, os sem-peles. E não é preciso muita imaginação para imaginar a circunstância social em que os caçadores terão envergado as peles, já não para proteger-se do frio, mas para afirmar que pertenciam à classe dominante",(Eco, 1989). "Talvez mais do que outros materiais, roupas são consumidas como funções benéficas, mas também como significados simbólicos de gosto, estilo de vida e identidade" (Cox, Dittmar, 1995). O que Cox e Dittmar não afirmam claramente é que a roupa comunica. É um emaranhado de signos que busca em si mesmo o objeto da comunicação. Daí, ao mesmo tempo que se caracteriza como uma das funções da linguagem, a metalinguagem, por isso mesmo, serve como meio implícito de marcar, claramente uma divisão de classes. O que é uma língua? Um sistema de códigos. Os sinais de trânsito? Nada mais são do que outro sistema de códigos. E a roupa? Ora, o vestuário, como diz Umberto Eco, bem depois de Roland Barthes, é claro, "fala". "Mensagens de perfil metalingüístico operam, portanto, com o código e o presentificam na mensagem" (Chalub, 1987). No decorrer da história a moda se comporta, através das roupas, como um código "recheado" de operações metalingüísticas, ou seja, a moda opera com o código. E este, se renova através dos tempos exatamente por esse processo de metalinguagem, que busca na roupa a renovação do seu círculo histórico, sempre buscando elementos em si mesma para a renovação. Daí, minha tese de que essa retroalimentação metalingüística não serve apenas como forma de renovação da moda, mas também, e, principalmente, como forma de manter um status quo, marcadamente através das roupas. Assim, também, o elemento que realimenta o processo comunicacional marca, de forma definitiva uma divisão de classes, ou seja, o consumo da roupa, no fundo, é um ato carregado de ideologia mas, ao mesmo tempo, de história. O jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, publicou, no caderno de economia do dia 23 de junho, denominado "Dinheiro", matéria cujo título era: "Políticos se vestem como 15 anos de atraso". Assinada pela jornalista Suzana Barelli, a matéria procurava mostrar essa dicotomia entre o homem moderno e seu modo de vestir, analisando a prática dos políticos brasileiros. Isso comprova que além de marcar época, "a roupa, enquanto sistema de sinal, compõe uma mensagem, uma vez que, no suporte do corpo do usuário, há um recorte da seleção do código (mesmo quando não selecionado para combinar, a displicência informa a displicência...). Essa linguagem, portanto, comunica, mas sobretudo informa, enquanto moda, a história da roupa. (Chalub, 1987). Umberto Eco reafirma esse caráter ideológico da linguagem do vestuário, quando nos diz: "Porque a linguagem do vestuário, tal como a linguagem verbal, não serve apenas para transmitir certos significados, mediante certas formas significativas. Serve também para identificar posições ideológicas, segundo os significados transmitidos e as formas significativas que foram escolhidas para transmitir" (Eco, 1989).

DA CABEÇA AOS PÉS

Os significados e as formas de transmiti-los, de que nos fala Umberto Eco, ficam marcados até mesmo em algumas peças do vestuário e confirmam a tese de que os significados chegam até nós como variações do que significavam em era idas. Algumas peças do vestuário carregam uma simbologia própria. A camisa, por exemplo, tem significados diversos, mas, no fundo, um núcleo comum. Tê-la ou não representa um estado de espírito, de acordo com a situação enfrentada, e isso não mudou muito nos dias atuais: "Estar desprovido de camisa é sinal não apenas do mais extremo despojamento material, como também de uma completa solidão moral, e de ser relegado pela sociedade; já não existe proteção: nem a de um lugar material, nem a de um grupo, nem a de um amor. dar até a própria camisa, ao contrário, significa generosidade sem limites. É o gesto de quem partilha sua intimidade" (Chevalier, Gheerbrant, 1991).

A camisa em si já traz sua representação, mas o material do qual é feita também serve para mostrar a qual classe social ou o grupo ao qual pertence quem a usa: "O próprio material de que é feita a camisa, em contato com o corpo, matiza seu simbolismo: cânhamo rude, a de camponês ou asceta; linho fino, a das pessoas da sociedade; seda preciosa, a dos ricos; e a camisa bordada que se usa nas cerimônias etc. cada uma delas assinala um personagem" (Chevalier, Gheerbrant, 1991).

Da camisa, passamos para o cinto, que, de acordo com a Bíblia Sagrada, é a primeira das peças do vestuário. Observações etnográficas confirmam a versão bíblica. Isso significa que o cinto é o mais antigo dos elementos do traje do homem moderno. Antigo, ou não, traz uma ambivalência simbológica representada por dois verbos: o religar e o ligar. O primeiro significa atar, ligar bem. Com isso, o cinto tranqüiliza, dá força e poder. Ao mesmo tempo, o cinto liga. E, ao ligar, que significa atar, prender, o cinto representa a submissão, a dependência. É uma espécie de restrição da liberdade. "...Ele se torna um emblema visível, muitas vezes glorificante, que proclama a força e os poderes dos quais seu portador está investido: tais como, por exemplo, as faixas dos judocas na diferentes cores, os cinturões dos soldados, aos quais estão penduradas as armas, a faixa do presidente da câmara municipal (França), e os inúmeros cintos votivos, iniciáticos ou usados nas ocasiões solenes, mencionados nas tradições e ritos de todos os povos". "O cinto protege contra os maus espíritos, da mesma maneira que os cinturões de proteção ao redor das cidades as protegem dos inimigos".(Chevalier, Gheerbrant, 1991). Em algumas culturas antigas, as jovens costumavam exibir os cintos de castidade, com orgulho, até que os noivos os desatassem. Era a simbologia da virgindade, vista com outros olhos que não os da cultura moderna. Era uma forma de demonstrar a submissão da mulher ao homem com o qual estava se casando. No fundo, os vistosos cintos usados pelos jovens modernos procuram, de certa forma, marcar a mesma representação de força, poder e tranqüilidade, demonstrados no sentido do verbo religar. O cinto seria uma forma de religá-lo e ligá-lo ao grupo social que pertecem. Já o sapato é símbolo de afirmação social, de autoridade. "Um antigo costume russo exigia que no banquete de bodas o guardanapo da noiva fosse dobrado em forma de cisne e o do noivo em forma de sapato. Na Igreja, a noiva tenta ser a primeira a pisar sobre o tapete de cetim cor-de-rosa sobre o qual se realizava o juramento na cerimônia ortodoxa, a fim de dominar seu esposo; na noite de núpcias, ela devia descalçar o marido - uma das botas do noivo continha um rebenque e a outra, dinheiro." (Chevalier, Gheerbrant, 1991). O calçado, representa, modernamente, a liberdade. É o signo de um homem que si basta por si mesmo. Que é responsável pelos seus atos. Simbolizaria a emancipação masculina. A independência, o poder e o dinheiro. O homem que consegue comprar seus sapatos é um homem que não depende mais dos pais e da família.

A VOZ MODERNA DAS ROUPAS

É certo que algumas peças de roupas perderam seu significado primitivo com o passar do tempo. Mas, é verdade também que, em sua maioria, trazem a essência de servir como uma distinção de classe e uma forma de poder, até mesmo quando observadas isoladamente em seus significados, como o fizemos anteriormente.

"A publicidade dada às escolhas e a respectiva corrida conformista à imitação esvaziam muitas vezes as escolhas de vestuário do seu significado primitivo" (Eco, 1989). Essa ameaça de esvaziamento também preocupa Carlyle: "a roupa nos deu a individualidade, as distinções, os requintes sociais; mas ameaça transformar-se em meros manequins" (Carlyle in Chevalier, Gheerbrant, 1991). No entanto, o que tanto Eco quanto Carlyle sintetizam em suas afirmações são pontos que saltam aos olhos a partir do surgimento da indústria da moda, o que nos faz lembrar Ciro Marcondes Filho: "Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e negação do subjetivismo" (Marcondes Filho, 1989). Esse mesmo fenômeno de generalização, padronização, simplificação parece ter sido incorporado pela indústria da moda. No entanto, essa negação do subjetivismo não existe. Incapaz de esvaziar os elementos persuasivos de venda caracterizados pelo próprio código, a roupa, que serve como distinção, a indústria da moda, ao contrário, explora essa subjetividade latente das roupas para vendê-las. Entretanto, a preocupação de Carlyle de que a roupa se transformasse em mero manequim não deixa de ser plausível. Modernamente, então, o manequim está muito mais presente nas campanhas publicitárias. Porém, com isso, a roupa não perdeu seu significado. Ao contrário, ganhou mais um: o da perversão, o do erro, ligados ao significado do próprio manequim. O manequim simboliza a identificação do homem com uma matéria perecível, com uma sociedade, com uma pessoa, com um desejo pervertido, com um erro. "É assimilar um ser à sua imagem" . Ora, modernamente, esses elementos são explorados ao máximo quando se quer vender uma roupa. Logo, os significados através dos tempos permaneceram, enquanto a roupa vai incorporando novas significações. "Na ocasião dos desfiles das grandes casas de costura, as espectadoras se vêem e se projetam nos vestidos animados por manequins, naturalmente escolhidos pela beleza de suas formas. Esses manequins são destinados a desaparecer dos vestidos que usam, como imagens admiráveis, mas efêmeras, que a realidade das compradoras substituirá. O mito da identificação funciona, nessas horas, pela graça do manequim, somada à arte do costureiro" (Chevalier, Gheerbrant, 1991). César, em De Bello Gallico contava que Laodamia havia modelado um manequim de cera à semelhança de seu defunto marido e que ela tinha o costume de o abraçar secretamente. Mas seu pai descobriu e jogou o manequim no fogo. Laodamia o acompanhou e foi queimada viva. A partir dessa lenda de César, o manequim assumiu esse caráter de erro, de perversão, de desejo. Talvez aí esteja a explicação para o fato de, modernamente, as manequins serem vistas como objeto de desejo, de perversão, e nunca como profissionais de moda. Talvez daí também venha o significado de efemeridade dos desfiles de modas. Em nenhum dos casos, porém, a roupa perdeu o significado de identificação do homem com sua realidade, com o grupo ao qual pertence. A roupa representa, inclusive, pelo estilo, uma época, uma fase da história, ao mesmo tempo que representa o homem em busca de si mesmo através da identificação, assumida pela roupa. "Por exemplo, uma mulher que valoriza a qualidade e a utilidade da roupa é provavelmente menos fácil de perceber quando escolhe novas peças do que um homem que vê nelas um importante acessório para melhorar continuamente seu prestígio social entre seus pares"(Cox , Dittmar, 1995). A evidência dessa busca do homem de melhorar seu prestígio junto aos outros homens também foi ressaltada pelo jornal Folha de S. Paulo, no dia 16 de junho de 1996, novamente no caderno "Dinheiro". Em uma matéria cujo título era "Armários denunciam vaidade masculina", a jornalista Suzana Barelli revela o cuidado que os homens têm com a imagem. A psicanalista Eugênia Turenko explica: "A roupa é uma linguagem. É uma forma de falar. Faz parte da pulsão Escópica, ou seja, da necessidade consciente de olhar e ser olhado. Por outro lado, o olhar é o espelho. Reflete você em alguém. Por isso, a roupa faz parte do imaginário das pessoas. É o modo de vestir que caracteriza determinada profissão e determinada pessoa." A jornalista Nicole Pibeaut, na revista Interview, edição 190 de novembro de 1995, nas páginas 46 e 47, apresenta desenhos e características dessas mensagens que as roupas transmitem. Caracteriza tipos como cafetão, brega chique, esportivo, destroy, chouchou e non. "O tipo, a qualidade e estilo da roupa que uma pessoa veste está intimamente ligado à classe social da pessoa" (Engel, Blackwell, Miniard, 1995). Isto comprova que a tomada de decisão de compra de uma roupa, ainda que modernamente, traz as mesas influências de classe das épocas posteriores. O consumidor moderno busca, como o consumidor antigo, não-apenas proteção. Ele quer, através das roupas, marcar uma diferenciação de classe ou de grupo, algo que, poderíamos dizer, é intrínseco às roupas, ao vestuário, seja ele moderno ou antigo. "Os significados sociais e psicológicos e as funções das roupas necessitam focalizar as diferenças de ambos os sexos. Homens e mulheres relacionam diferentemente o material de suas possessões" (Cox, Dittmar, 1995). Mas, no caso das roupas, é evidente que a distinção social é o traço mais importante. "Aceitamos a proposição de que consumir bens funciona como um símbolo de identidade; isto é, o significado psicossocial que esses bens têm para os indivíduos parece refletir suas maiores regras ou categorias sociais" (Cox, Dittmar, 1995). "A tomada de decisão para o consumidor é influenciada pela classe social do indivíduo especialmente na determinação das necessidades e critérios de apreciação" (Engel, Blackwell, Miniard, 1995). É evidente que há sempre maior ênfase nas mensagens subjetivas e no simbolismo de classe das roupas do que na funcionalidade. Como Umberto Eco bem frisou, há muito, o homem não usa as roupas apenas para se proteger. É longe o tempo em que o caçador usava a pele apenas para proteger-se do frio. Em pouco tempo, aquela pele passou a marcar a distinção de classe entre os caçadores: os melhores possuíam e vestiam as melhores peças. "Roupas fornecem um estímulo, uma insinuação visual para a cultura de classe do usuário. Ela serve como um símbolo de diferenciação social porque dá ao usuário alta visibilidade" (Engel, Blackwell, Miniard, 1995). E essa questão da alta visibilidade das roupas é estimulada e trabalhada em sociedade desde cedo, fazendo com que o adulto nem perceba que, ao comprar uma roupa, está praticando um ato altamente ideológico, intrínseco à sua formação: "embora vestir tenda para um mercado consumista desde o nascimento, diferenças de classes sociais nas atividades de compra de roupa e de uso dessas roupas no relacionamento com seus pares aparecem claramente na adolescência" (Cox, Dittmar, 1995). O depoimento com o qual uma estudante de 14 anos de uma escola de subúrbio americana descreve as outras estudantes, citado por Engel, Blackwell, e Miniard no livro Consumer Behavior, marca bem o que chamo de "a voz moderna da roupas" e a presença de todos esses elementos ideológicos da divisão de classes que a roupa traz desde os tempos mais remotos: "Existem três tipos de crianças em nossa escola. As crianças ricas vestem jeans Guess ou roupas da The Limited. Elas têm pais que dão cartão de crédito e os usam para conseguirem o que quiserem. Elas têm que ir ao banheiro depois do almoço para refazer a maquiagem. Elas têm sete relógios Swatch, um para cada dia da semana. O cabelo delas é ondulado ou enrolado em uma onda. Em casa elas têm cama d’água. As crianças das classes mais baixas não se vestem tão bem. Elas não se penduram ano redor de grupos mais frios. Elas fazem muitas brincadeiras. Elas podem ter estilos do The Limited mas você sabe que as roupas foram compradas em lojas de departamento. A classe mais baixa desta escola tem mais dinheiro do que as crianças das escolas públicas mas não se vestem bem nem agem direito. As crianças de classe média têm dinheiro e se vestem melhor. Não são realmente frias nem falam sobre si mesma como muitas crianças das classes inferiores" (Engel, Blackwell, Miniard, 1995).

CONCLUSÃO

Muito embora Umberto Eco afirme que a publicidade dada às escolhas e a respectiva corrida conformista à imitação esvaziam muitas vezes as escolhas de vestuário do seu significado primitivo, fica-nos claro que esse significado pode ser esvaziado em parte do seu conteúdo. Na essência, a da divisão clara de classes que a roupa representa, não houve modificações substanciais no decorrer do tempo. Ao contrário, houve sim, um forte aumento na essência dessa representação, talvez até estimulado também pela publicidade. O depoimento da estudante americana sobre sua colegas deixa claro que essa divisão de classes é estimulada a partir da infância. E, como diz Cox e Dittmar, o estímulo consumista para a compra de roupas aparece na infância mas fica caracterizado com mais clareza na adolescência.

O importante é percebemos que a simples compra de uma peça de vestuário, que à primeira vista nos parece algo inocente e sem nenhuma carga ideológica, é um ato mais complexo e cheio de significações. Existe um código do vestuário. Embora seja susceptível às mudanças, e essas podem acontecer de estação para estação, as roupas falam e o estudo dessa fala não deve se restringir aos analistas de vestuário.

"E pelo contrário o problema deveria interessar quem quer que decida viver em sociedade, ouvindo-a falar por todas as formas de que ela é capaz. Porque a sociedade, seja de que forma se constituir, ao constituir-se, fala. Fala porque se constitui e constitui-se porque começa a falar. Quem não sabe ouvi-la falar onde quer que ela fale, ainda que sem usar palavras, passa por essa sociedade às cegas: não a conhece, portanto, não pode modificá-la." (Eco, 1989).

Não é do nosso interesse, a partir desse trabalho, tentar modificar a sociedade a partir do conhecimento histórico da significativa divisão de classes que a roupa representa. Desde que a produção de roupas deixou de ser artesanal e passou a figurar como mais um produto industrial, evidencia-se a necessidade de ser trabalhada como outro produto qualquer. Como produto, então, é natural que todos os seus símbolos sejam explorados à exaustão, com a perspectiva de venda. O indivíduo, enquanto consumidor, comporta-se exatamente em busca dessa diferenciação do grupo manifestada através da roupa. A compra de uma determinada peça do vestuário não é um ato tão simples quanto possa parecer. Envolve uma série de decisões, aparentemente individuais, mas que se relacionam inteiramente com o grupo ao qual o indivíduo pertence. E essa divisão em grupos levada ao extremo nada mais é do que a velha divisão da sociedade em classes, cuja mensagem é bem determinada pela "fala" das roupas, bem representada no depoimento da estudante americana de uma escola particular. Esse ato ideológico da compra de uma peça do vestuário, no fundo, é um ato ilusório, como o é a mobilidade de classes.

"Na base da moda, portanto, está um impulso ambivalente: o desejo individual de diferenciar-se e a procura de um adequamento às normas do grupo social a que se quer pertencer; o indivíduo procura respeitar as regras do grupo e de não provocar uma reação negativa que pode fazer com que ele seja posto à margem. Já se faz notar que quanto a integração no grupo é levada a cabo duma maneira que se pode dizer total, as normas do grupo são de tal forma assimiladas que dão a ilusão da liberdade plena de opção, dão a ilusão de fazer a sua própria moda." (Lomazzi, 1989). Esse desejo individual de diferenciar-se do qual nos fala Lomazzi certamente foi "mensageiro" que trouxe a marca das roupas como significado claro de divisão de classes e grupos. E essa ambivalência, também apontada por Lomazzi, que dá ao indivíduo a ilusão de que pode fazer sua própria moda talvez seja o que tentam exprimir os jovens "rebeldes sem causa".

O que tem que ficar bem claro é que na linguagem do vestuário, o código roupa se renova exatamente nesse processo de retroalimentação de significados do próprio código. Portanto, por mais variações que possam ocorrer, essa marca ideológica da roupa é que garantiu a permanência da metalingüística de seus significados através do tempo. E esse processo de retroalimentação, que também é ideológico, demarca, com clareza, a opção do consumidor por essa ambivalência entre o desejo individual de diferenciar-se e a procura da adequação às regras do grupo. Esses dois elementos, no fundo, marcam a metalinguagem das roupas, o processo de decisão de compra de uma peça de vestuário e a longevidade do seu significado de divisão de classes e grupos.

Em matéria intitulada "Alegre retorno", publicada na revista Veja, edição 1.445, no dia 22 de maio de 1996, a jornalista Glória Kalil mostra como o chamado vestido-camisa, explosão de consumo de 1968, estava de volta igual ao que era quando surgiu, no início dos anos 50. Uma comprovação de que, na indústria da moda, a roupa se alimenta desse eterno recomeço.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

Arkin, Anat. (1995) Tailoring clothes to suit the image. in People Management, 24 august.

Barelli, Suzana. (1996a) Armários denunciam vaidade masculina, in Folha de S. Paulo, São Paulo: Folha da Manhã, 16 de junho.

Barelli, Suzana. (1996b) Políticos se vestem com 15 anos de atraso, in Folha de S. Paulo, São Paulo: Folha da Manhã, 23 de junho.

Bentley J., Trevor. (1995) Uniformity versus diversity. in People Management, 24 august.

Chalub, Samira. (1987) Funções da Linguagem. São Paulo: Ática.

Chevalier, Jean, Gheerbrant, Alain. (1991) Dicionário de Símbolos - Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio.

Cox, Jason, Dittmar, Helga. (1995) The funcions of Clothes and clothing (dis)satisfacion: a gender analysis among british students, in Journal of Consumer Policy.

Eco, Umberto. (1989) O hábito fala pelo monge, in Psicologia do Vestir. 3. ed. Lisboa: Assírio e Alvim.

__________________Viagem na irrealidade cotidiana. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Egel F. James, Blackwell D. Roger, Miniard W. Paul. (1995) Consumer Behavior. 8. ed. Orlando, Florida: The Dryden Press.

Kalil, Glória. (1996) Alegre retorno, in Veja, ed. 1.445, ano 29, nº 21, São Paulo: Abril, maio.

Lomazzi, Giorgio. (1989) Um consumo ideológico, in Psicologia do Vestir. 3. ed. Lisboa: Assírio e Alvim

Marcondes Filhos, Ciro. (1989) O Capital da Notícia - Jornalismo como produção Social da Segunda Natureza. 2. ed. São Paulo: Ática.

Mallac, Guy de, Eberdach, Margaret. (1977) Barthes. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Melhoramentos/Edusp.

Pibeaut, Nicole. (1995) Eles!, in Interview, ed.190, São Paulo: Azul, novembro.

Phaneuf, M. Anne. (1995) Deconding dress code, in Sales & Marketing Management, september.

Nenhum comentário: