A QUEDA DA CASA DE USHER, EDGAR ALLAN POE
(1839)
Son coeur est un luth suspendu sitôt qu'on le touche, il réssone
DE BÉRANGER
DURANTE todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando, sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher. Não sei como foi, mas ao primeiro olhar sobre o edifício invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável, digo insuportável porque - o sentimento não era aliviado por qualquer dessas semi-agradáveis, porque poéticas, sensações com que a mente recebe comumente até mesmo as mais cruéis imagens naturais de desolação e de terror. contemplei o panorama em minha frente - a casa simples e os aspectos simples da paisagem da propriedade, as paredes soturnas, as janelas vazias, semelhando olhos, uns poucos canteiros de caniços e uns poucos troncos brancos de árvores mortas, com extrema depressão de alma que só posso comparar, com propriedade, a qualquer sensação terrena, lembrando os instantes após o sonho de ópio. Para quem dele desperta, a amarga recaída na vida cotidiana, o tombar do véu. Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a transformar-se em qualquer coisa de sublime. Que era - parei para pensar - que era o que tanto me perturbava à contemplação do Solar Usher? Era um mistério inteiramente insolúvel; e eu não podia apreender as idéias sombrias que se acumulavam em mim ao meditar nisso. Fui forçado a recair na conclusão insatisfatória de que, se há, sem dúvida, combinações de objetos muito naturais que teem o poder de assim influenciarnos, a análise desse poder, contudo, permanece entre as considerações além de nossa argúcia. Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente dos detalhes da paisagem, dos pormenores do quadro, fosse suficiente para modificar ou talvez aniquilar sua capacidade de produzir tristes impressões; e, demorando-me nesta idéia, dirigi o cavalo para a margem escarpada de um pantanal negro e lúgubre que reluzia parado junto ao prédio, e olhei para baixo - com um tremor ainda mais forte do que antes -, para as imagens alteradas e invertidas dos caniços cinzentos e dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias. Não obstante isso, eu me propusera ficar algumas semanas naquela mansão de melancolia. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um dos meus alegres companheiros de infância; mas muitos anos havia decorrido desde o nosso último encontro. Uma carta, porém, chegara-me ultimamente, em distante região do país - uma carta dele por sua natureza estranhamente importuna, não admitia resposta que não fosse pessoal. O manuscrito dava indícios de nervosa agitação. O signatário falava de uma aguda enfermidade física, de uma perturbação mental que o oprimia e de um ansioso desejo de ver-me, como seu melhor e, em realidade, seu único amigo pessoal, a fim de lograr, pelo carinho de minha companhia, algum alívio a seus males. A maneira pela qual tudo isso e ainda mais era dito, o aparente sentimento que seu pedido demonstrava não me deixaram lugar para hesitação; e, em conseqüência, aceitei logo o que ainda considerava um convite bastante singular. Embora quando crianças tivéssemos sido companheiros íntimos, conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre fora excessiva e constante. Sabia, contudo, que sua família, das mais antigas , se tornara notada desde tempos imemoriais por uma particular sensibilidade de temperamento, manifestando-se, através de longas eras, em muitas obras de arte exaltada e, ultimamente, evidenciando-se em repetidas ações de caridade munificente, embora discreta, assim como uma intensa paixão pelas sutilezas, talvez mesmo mais do que pelas belezas ortodoxas e facilmente reconhecíveis da ciência musical. Eu conhecia, também, o fato, muito digno de nota que do tronco da família Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer época, um ramo duradouro; em outras palavras, a família inteira só se perpetuava por descendência direta e assim permanecera sempre, com variações muito efêmeras e sem importância. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto a mente examinava a concordância perfeita do aspecto da propriedade com o caráter exato de seus habitantes, e enquanto especulava sobre a possível influência que aquela, no longo decorrer dos séculos, poderia ter exercido sobre estes, era essa deficiência talvez, de um ramo colateral, e a conseqüente transmissão em linha reta, de pai a filho, do nome e do patrimônio, que afinal tanto identificaram ambos, a ponto de dissolver o título original do domínio na estranha e equivoca denominação de "Solar de Usher", denominação que parecia incluir, na mente dos camponeses que a usavam, tanto a família quanto a mansão familiar. Disse que o simples efeito de minha experiência algo pueril - a de olhar para dentro do pântano - aprofundara a primeira impressão de singularidade. Não podia haver dúvida de que a consciência do rápido aumento de minha superstição - por que não a chamaria assim? - servia principalmente para intensificar esse aumento. Tal, sabia eu de há muito, é a lei paradoxal de todos os sentimentos que têm o terror como base. E só podia ter sido por esta razão que, quando de novo ergui os olhos da imagem do edifício no paul para a própria casa, cresceu-me no espírito uma estranha fantasia - uma fantasia de fato tão ridícula que só a menciono para mostrar a viva força das sensações que me oprimiam.
Tanto eu forçara a imaginação que realmente acreditava que em torno da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera característica de ambos e de seus imediatos arredores - atmosfera , que não tinha afinidade com o ar do céu, mas que se exalava das arvores apodrecidas e do muro cinzento e do lago silencioso um vapor pestilento e misterioso, pesado, lento, fracamente visível e de cor de chumbo. Desembaraçando o espírito do que devia ter sido um sonho examinei mais estreitamente o aspecto real do edifício. Sua feição dominante parecia ser a duma excessiva antiguidade. Fora grande o desbotamento produzido pelos séculos. Cogumelos miúdos se espalhavam por todo o exterior, pendendo das goteiras do telhado como uma fina rede emaranhada. Tudo isso, porém, estava fora de qualquer deterioração incomum. Nenhuma parte da alvenaria havia caído e parecia haver uma violenta incompatibilidade entre sua perfeita consistência de partes e o estado particular das pedras esfarinhadas. Isto me lembrava bastante a especiosa integridade desses velhos madeiramentos que durante muitos anos apodrecera em alguma adega abandonada, sem serem perturbados pelo hálito do vento exterior. Além deste índice de extensa decadência, porém dava o edifício poucos indícios de fragilidade. Talvez o olhar do observador minucioso descobrisse uma fenda mal perceptível que estendendo-se do teto da fachada, ia descendo em ziguezague pela parede, até perder-se nas soturnas águas do lago. Notando estas coisas, segui a cavalo por uma curta calçada que levava à casa. Um criado tomou meu cavalo e penetrei numa abóbada gótica do vestíbulo. Outro criado, a passos furtivos conduziu-me, então, em silêncio, através de muitos corredores escuros e intrincados, até o gabinete de seu patrão. Muito do que ia encontrando pelo caminho contribuía, não sabia eu como, para reforçar os sentimentos vagos de que já falei. Os objetos que me cercavam , as esculturas dos forros, as sombrias tapeçarias das paredes, a negrura de ébano dos soalhos e os fantasmagóricos troféus de armas que tilintavam à minha passagem precipitada eram coisas com as quais me familiarizara desde a infância e, conquanto não exitasse em reconhecê-las como assim familiares, espantava-me ainda verificar como não eram familiares as fantasias que essas imagens habituais faziam irromper. Numa das escadarias encontrei o médico da família. Seu aspecto, pensei, apresentava a expressão mista da agudeza baixa e da perplexidade. Passou por mim precipitadamente e seguiu. O criado então abriu uma porta e me levou à presença do seu patrão. O aposento em que me achei era muito amplo e elevado. As janelas eram longas, estreitas e pontudas, a uma distância tão vasta do soalho de carvalho negro que, de pé sobre este, não as poderíamos atingir. Fracos clarões de uma luz purpúrea penetravam pelos vitrais e gelosias, conseguindo tornar suficientemente distintos os objetos mais salientes em derredor; em vão, porém, o olhar lutava para alcançar os ângulos mais distantes do quarto, ou os recessos do teto esculpido e abobadado. Negras tapeçarias penduravam-se das paredes. O mobiliário, em geral, era profuso, desconfortável, antigo e desconjuntado. Viamse espalhados muitos livros e instrumentos musicais, mas nenhuma vivacidade conseguiam eles dar ao cenário. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Um ar de melancolia acre, profunda e irremissível pairava ali, penetrando tudo.
À minha entrada, Usher ergueu-se de um sofá em que estivera deitado, ao comprido, e saudou-me com o vivo calor que em si tinha muito, pensei eu a princípio, de cordialidade constrangida, do esforço obrigatório do homem de sociedade entediado. Um olhar, porém, para seu rosto convenceu-me de sua perfeita sinceridade. Sentamo-nos, e, por alguns momentos, enquanto ele não falou, olhei-o com um sentimento meio de dó, meio de espanto. Certamente, homem algum jamais se modificou tão terrivelmente, em período tão breve, quanto Roderick Usher! Foi com dificuldade que cheguei a admitir a identidade do fantasma à minha frente com o companheiro de minha primeira infância. Os característicos de sua face, porém, sempre haviam sido, em todos os tempos, notáveis.
Uma compleição cadavérica; um olhar amplo, líquido e luminoso, além de qualquer comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos mas de uma curva extraordinariamente bela; nariz de delicado modelo hebraico, mas com uma amplidão de narinas incomum em tais formas; um queixo finamente modelado, denunciando, na sua falta de proeminência, a falta de energia moral; cabelos de mais tenuidade e maciez que fios de aranha; tais feições e um desenvolvimento frontal excessivo, acima das regiões das têmporas, compunham uma fisionomia que dificilmente se olvidava. E agora, pelo simples exageros dos característicos dominantes desses traços e da expressão que eles costumavam apresentar, tanto se tornara a mudança que não reconheci logo com quem falava. A lividez agora cadavérica da pele e o brilho sobrenatural do olhar, principalmente, me deixaram atônito e mesmo horrorizado. Também o cabelo sedoso crescera à vontade, sem limites; e como ele, na sua tessitura de aranhol, mais flutuava do que caia em torno da face, eu não podia, mesmo com esforço, ligar sua aparência estranha com a simples idéia de humanidade. Impressionou-me logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência; e logo verifiquei que isso nascia de uma série de lutas fracas e fúteis para dominar uma perturbação habitual, uma excessiva agitação nervosa. Na verdade, eu me achava preparado para encontrar algo dessa natureza, não só pela carta dele como por certas recordações de fatos infantis e por conclusões derivadas de sua conformação física e temperamento especiais. Seu modo de agir era alternadamente vivo e indolente. Sua voz variava, rapidamente, de uma indecisão trêmula (quando a energia animal parecia inteiramente ausente) àquela espécie de concisão enérgica, aquela abrupta, pesada, pausada e cavernosa enunciação, àquela pronúncia carregada, equilibrada e de modulação guturalmente perfeita que se pode observar no ébrio contumaz ou no irremediável fumador de ópio durante os períodos de sua mais intensa excitação. Foi assim que ele falou do objetivo de minha visita, de seu ansioso desejo de me ver e da consolação que esperava que eu lhe trouxesse. Passou a tratar, com alguma extensão, do que concebia ser a natureza de sua doença. Era, disse ele, um mal orgânico e de família, para o qual desesperara de achar remédio. Simples afecção nervosa - acrescentou imediatamente -, que sem dúvida passaria depressa. Desenvolvia-se numa multidão de sensações anormais. Algumas destas, como ele as detalhou, me interessaram e admiraram embora talvez para isso concorressem os termos e o modo geral de sua narrativa. Sofria muito de uma acuidade mórbida dos sentidos; só o alimento mais insípido lhe era suportável; somente podia usar vestes de determinados tecidos; eram-lhe asfixiantes os perfumes de todas as flores; mesmo uma fraca luz lhe torturava os olhos e apenas sons especiais, além dos brotados dos instrumento não lhe inspiravam horror. Verifiquei que ele era um escravo agrilhoado a uma espécie anômala de terror. "Morrerei - disse ele -, devo morrer nesta loucura deplorável. Estarei perdido assim, assim e não de outra maneira. Temo os acontecimentos do futuro, não por si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço ao pensar em algum incidente, mesmo o mais trivial, que possa influir sobre essa intolerável agitação da alma. Na verdade, não tenho horror ao perigo, exceto no seu efeito positivo: o terror. Nessa situação enervante e lastimável, sinto que chegará, mais cedo ou mais tarde, o período em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com esse fantasma lúgubre: o MEDO." Fiquei sabendo, ademais, a intervalos e por meio de frases quebradas e equivocas, de outro traço singular de sua condição mental. Ele estava preso a certas impressões supersticiosas com relação ao prédio em que morava e de onde, por muitos anos, nunca se afastara, e com relação a uma influência cuja força hipotética era exposta em termos demasiado tenebrosos para serem aqui repetidos; influência que certas particularidades apenas de forma e de substância do seu solar familiar, através de longos sofrimentos, dizia ele, exerciam sobre seu espírito; efeito que o físico das paredes e torreões cinzentos e do sombrio pântano em que esse conjunto se espelhava, afinal, produzira sobre o moral de sua existência. Ele admitia, porém, embora com hesitação, que muito da melancolia peculiar que assim o afligia podia rastrear-se até uma origem mais natural e bem mais admissível: a doença severa e prolongada, a morte - aparentemente a aproximar-se de uma irmã ternamente amada, sua única companhia durante longos anos, sua última e única parenta na terra. "O falecimento dela - dizia ele, com amargura que nunca poderei esquecer - deixá-lo-ia (a ele, o desesperançado e frágil) como o último da antiga raça dos Ushers." Enquanto ele falava, Lady Madeline (pois era assim chamada) passou lentamente para uma parte recuada do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Olhei-a com extremo espanto não destituído de medo. E contudo achava impossível dar-me conta de tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia, enquanto meus olhos acompanhavam seus passos que se afastavam. Quando afinal se fechou sobre ela uma porta, meu olhar buscou instintivamente, curiosamente, a fisionomia do irmão. Mas ele havia mergulhado a face nas mãos e apenas pude perceber que uma palidez bem maior do que a habitual se havia espalhado sobre os dedos emagrecidos, através dos quais se filtravam lágrimas apaixonadas A doença de Lady Madeline tinha por muito tempo zombado da habilidade de seus médicos. Uma apatia fixa, um esgotamento gradual de sua pessoa e crises freqüentes, embora transitórias, de caráter parcialmente cataléptico eram os insólitos sintomas. Até ali tinha ela suportado bravamente o peso de sua doença e não quisera ir para a cama; mas, ao fim da noite de minha chegada à casa, ela sucumbiu (como me contou seu irmão, à noite, com inexprimível agitação) ao poder esmagador do flagelo; e eu soube que o olhar que havia lançado sobre ela seria assim, provavelmente, o último e que não mais veria aquela mulher, pelo menos enquanto estivesse viva. Durante os vários dias que se seguiram, seu nome não foi pronunciado nem por Usher nem por mim, e nesse período fiquei eu ocupado em esforços tenazes para aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos, ou ouvíamos como em sonhos, suas improvisações estranhas, em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que uma intimidade cada vez maior me introduzia sem reservas nos recessos de seu espírito, mais amargamente eu percebia a vaidade de todas as minhas tentativas de alegrar uma alma da qual a escuridão , como uma qualidade inerente e positiva, se derramava sobre todos os objetos do universo moral e físico, numa incessante irradiação de trevas. Guardarei para sempre a lembrança de muitas horas solenes que passei a sós com o dono do Solar de Usher. Contudo, seria mal sucedido em qualquer tentativa de exprimir uma idéia do exato caráter dos estudos ou das ocupações a que ele me arrastava ou de que me mostrava o caminho. Uma idealidade excitada e altamente mórbida lançava um brilho sulfuroso sobre tudo. Suas lone improvisadas endechas soarão para sempre aos meus ouvidos. Entre outras coisas, recordo-me penosamente de certa adulteração e amplificação da estranha ária da derradeira valsa de Von Weber. Quanto às pinturas geradas pela sua complicada fantasia - e que iam aumentando, traço a traço, numa espécie de vaguidão que me causava os mais arrepiantes calafrios, porque eu tremia sem saber por quê -, quanto a essas pinturas (como suas imagens estão vivas agora diante de mim!), em vão tentaria delas extrair mais do que uma pequena parte que pudesse ficar nos limites das simples palavras escritas. Pela extrema simplicidade, pela nudez de seus desenhos, ele atraía e subjugava a atenção. Se jamais algum mortal pintou uma idéia, esse foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, nas circunstâncias que então me cercavam, erguia-se das puras abstrações que o hipocondríaco se esforçava por lançar na tela um terror de intensidade intolerável, do qual nem a sombra, eu jamais senti na contemplação dos devaneios de Fuselli,(3) certamente brilhantes, embora demasiado concretos. Uma das fantasmagóricas concepções de meu amigo, que não partilhava tão rigidamente do espírito de abstração, pode ser esboçada, embora fracamente, em palavras. Um pequeno quadro apresentava o interior de uma adega, ou túnel, imensamente longo e retangular, com paredes baixas, polidas, brancas e sem interrupção ou ornamento. Certos pontos acessórios da composição servia bem para traduzir a idéia de que essa escavação jazia a uma profundidade excessiva, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer saída em seu vasto percurso, e nenhuma tocha ou qualquer outra fonte artificial de luz era perceptível; e, no entanto, uma efusão de intensos raios rolava de uma extremidade à outra, tudo banhando de esplendor fantástico e inapropriado. Já me referi àquele estado mórbido do nervo acústico que tornava toda música intolerável ao paciente, exceto certos efeitos de instrumentos de corda. Foram talvez os estreitos limites a que ele assim se confinou na guitarra que deram origem, em grande parte ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus impromptus não podia ser assim explicada. Eles devem ter sido - e eram, nas notas bem como nas palavras de suas estranhas fantasias (pois ele frequentemente se acompanhava com improvisações verbais rimadas) - o resultado daquela intensa concentração e recolhimento mental a que eu antes aludi, observados apenas em momentos especiais da mais alta excitação artificial. Guardei facilmente de memória as palavras de uma dessas rapsódias. Talvez me tenha ela impressionado mais fortemente, quando ele ma apresentou, porque, na corrente subterrânea ou mística de seu significado, imaginei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha pleno conhecimento do vacilar de sua elevada razão sobre seu trono. Os versos intitulados "O Palácio Assombrado", eram pouco mais ou menos assim: No vale mais verdejante que anjos bons têm por morada, outrora, nobre e radiante palácio erguia a fachada. Lá, o rei era O Pensamento, e jamais um serafim as asas soltou ao vento. sobre solar belo assim.
Bandeiras de ouro, amarelas, no seu teto, flamejantes, ondulavam (foi naquelas…eras distantes !) e alado odor se evolava, quando a brisa, em horas cálidas, por sobre as muralhas pálidas suavemente perpassava.
Pelas janelas de luz o viajor a dança via espíritos que a harmonia de um alaúde tinham por lei E sobre o trono, fulgia (porfirogênito!) o Rei, com a glória, com a fidalguia, de quem tal reino conduz. Pela porta, cintilante de pérolas e rubis , ia fluindo a cada instante multidão de ecos sutis vozes de imortal beleza cujo dever singular era somente cantar do Rei a imensa grandeza. Mas torvos, lutuosos vultos assaltaram o solar! (Choremos! pois nunca o dia sobre o ermo se há de elevar!) E, em torno ao palácio, a glória que fulgente florescia e' apenas obscura história de velhos tempos sepultos! Pelas janelas, agora, em brasa, avista o viajante estranhas formas, que agita uma musica ululante; e, qual rio, se precipita pela pálida muralha uma turba que apavora, que não sorri, mas gargalha em gargalhada infinita! Lembro-me bem que as sugestões surgidas desta balada conduziram-nos a uma corrente de idéias dentro das quais se manifestou uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens têm pensado assim)3 como por causa da pertinácia com que a mantinha. Esta opinião, na sua forma geral, era a da sensitividade de todos os seres vegetais. Mas, na sua fantasia desordenada a idéia havia assumido um caráter mais audacioso e avançava, sob certas condições, no reino do inorgânico. Faltavam-me palavras para exprimir toda a extensão ou o grave abandono de sua persuasão. Esta crença, todavia, estava ligada (como já dei antes a entender) às cinzentas pedras do lar de seus antepassados. As condições da sensitividade tinham sido aqui, imaginava ele realizadas pelo método de colocação dessas pedras na ordem do seu arranjo, bem como na dos muitos fungos que as revestiam e das árvores mortas que se erguiam em redor, mas, acima de tudo, na longa e imperturbada duração deste arranjo e em sua reduplicação nas águas dormentes do lago. A prova - a prova da sensitividade - haveria de ver-se, dizia ele (e aqui me sobresaltei ao ouvi-lo falar), na gradual ainda que incerta condensação duma atmosfera era que lhes era própria, em torno das águas e dos muros. O resultado era discernível, acrescentava ele, naquela influencia silenciosa, embora importuna e terrível, que durante séculos tinha moldado os destinos de sua família, e fizera dele, tal como agora o via, o que ele era. Tais opiniões não necessitam de comentários e por isso nenhum farei. Nossos livros - os livros que durante anos tinham formado não pequena parte da existência mental do inválido - estavam, como é de supor-se, de perfeito acordo com esse caráter de visionário. Analisávamos juntos obras tais como Vertvert et Chartreuse, de Gresset, o Belphegor, de Maquiavel; O Céu e o Inferno, de Swedenborg; A Viagem Subterranea de Nicolau Klimm, de Quiromancia, de Robert Flud, de Jean d'Indaginé e de La Chambre, a Viagem no Azul, de Tieck, e a Cidade do Sol, de Campanella. Um volume favorito era uma pequena edição, in octavo, do Directorium Inquisitorium, do dominicano Eymeric de Gironne; e haviam passagens de Pomponius Mela, a respeito dos velhos sátiros africanos e dos egipãs, sobre as quais ficava Usher a sonhar durante horas. Seu principal deleite, porém, consistia na leitura dum livro excessivamente raro e curioso, um in quarto gótico - manual duma igreja esquecida -, Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Eclesiae Maguntinae. Não podia deixar de pensar no estranho ritual dessa obra e nna sua provável influência sobre o hipocondríaco, quando, uma noite tendo-me informado bruscamente que Lady Madeline não mais vivia, revelou sua intenção de conservar-lhe o corpo por uma quinzena (antes de seu enterramento definitivo) em uma das numerosas masmorras, dentro das possantes paredes do castelo. A A razão profana, porém, que ele dava de tão singular procedimento era dessas que eu não me sentia com liberdade de discutir. Como irmão, tinnha sido levado a essa resolução (assim me dizia ele) tendo em conta o caráter insólito da doença da morta, certas perguntas inoportunas e indiscretas da parte de seus médicos e a localização afastada e muito exposta do cemitério da família. Não negarei que, quando me veio à memória a fisionomia sinistra do individuo a quem encontrara na escada no dia de minha chegada à casa, perdi a vontade de opor-me ao que eu encarava, quando muito, como uma preocupação inocente e sem dúvida alguma muito natural. A pedido de Usher, ajudei-o pessoalmente nos arranjos para o sepultamento temporário. Tendo sido o corpo metido no nós dois sozinhos levamo-lo para o seu lugar de repouso. A adega na qual o colocamos (e que estivera tanto tempo fechada que tochas semi-amortecidas na sua atmosfera sufocante não nos permitiam um exame melhor do local) era pequena, úmida e sem nenhuma entrada para luz; achava-se a grande profundidade, logo abaixo daquela parte do edifício em que se encontrava meu qquarto de dormir. Tinha sido utilizada, ao que parece, em remotos tempos feudais, para os péssimos fins de calabouço e, em dias recentes, como paiol de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois uma parte do chão e todo o interior duma longa arcada por onde havíamos passado estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta de ferro maciço tinha sido tambem protegida de igual modo. Quando girava nos gonzos, seu enorme peso produzia um som insolitamente agudo e irritante. Tendo depositado nosso fúnebre fardo, sobre cavaletes, naquele horrendo lugar, desviamos em parte a tampa ainda não pregada do caixão, e contemplamos o rosto do cadáver. Uma semelhaça chocante entre o irmão e a irmã deteve então, em primeiro lugar, a minha atenção; e Usher, adivinhando, talvez, meus pensamentos, murmurou umas poucas palavras, pelas quais vim a saber que a morta e ele tinham sido gêmeos e que afinidades, duma natureza mal intelegível, sempre haviam existido entre eles. Nossos olhares, porém não descansaram muito tempo sobre a morta, pois não a podiamos contemplar sem temor. A doença que assim levara ao túmulo a senhora, na plenitude de sua mocidade, havia deixado, como sempre aconntece em todas as moléstias de caráter estritamente cataléptico a ironia duma fraca coloração no seio e na face, e nos lábios aquele sorriso desconfiadamente hesitante, tão terrível na morte. Fechamos e pregamos a tampa e, depois de havermos prendido a porta de ferro, retomamos, com lassidão, o caminho de volta para os aposentos , pouco menos sombrios, da parte superior da casa. E então, tendo decorrido alguns dias de amargo pesar, uma mudança visivel operou-se nos sintomas da desordem mental de meu amigo. Suas maneiras usuais desapareceram. Suas ocupações costumeiras eram negligenciadas ou esquecidas. Vagava de quarto em quarto de passos precipitados, desiguais e sem objetivo. A palidez de sua fisionomia tomara, se possível, um tom ainda mais espectral, mas a luminosidade de seu olhar havia-se extinguido por completo. Não mais escutava aquele tom rouco de voz que ele outrora fazia às vezes ouvir, e sua fala era agora habitualmente caracterizada por gaguejo trêmulo de extremo terror. Havia vezes na verdade como de extremo terror. Havia vezes, na verdade, em que eu pensava que seu pensamento, incessantemente agitado, estava sendo trabalhado por algum segredo opressivo, lutando ele para ter necessária coragem de divulgá-lo. Às vezes, ainda, era euu forçado a considerar tudo como inexplicáveis devaneios da loucura-, pois via-o contemplar o vácuo durante horas a fio, numa atitude como se desse ouvido a algum som imaginário. Não admira que sua situação terrificasse, que me contagiasse. Senti subirem, rastejando em mim, por escalas lentas, embora incertas, as influências estranhas das fantásticas mas impressionantes superstições que ele entretinha. Foi especialmente depois de ir deitar-me, já noite alta, sete ou oito dias depois de haver sido colocado no túmulo o corpo de Lady Madeline , que experimentei o pleno poder desses sentimentos. O sono não se aproximou de meu leito, e as horas se iam desfazendo, uma a uma , Lutei para dominar com a razão o nervosismo que de mim se apoderava. Tentei levar-me a crer que muito, senão tudo aquilo que sentia, se devia à impressionante influência da sombria decoração do aposento, dos panejamentos negros e em farrapos que forçados ao movimento pelo sopro de uma tempestade nascente, ondulavam caprichosamente, para lá e para cá, nas paredes, frufrulhando, inquietas, junto aos ornatos da cama. Meus esforços, foram infrutíferos. Irreprimível tremor, pouco a pouco, me invadiu o corpo, e, por fim, sentou-se sobre meu próprio coração o incubo de uma angústia inteiramente infundada. Sacudindo-o decima de mim, em luta ofegante, ergui-me sobre os travesseiros perscrutando avidamente a intensa escuridão do quarto, - escutei não sei por quê, mas impelido por uma força instintiva - sons baixos e indefinidos, que vinham por entre as pausas da tempestade, a longos intervalos, não sabia eu de onde. Dominado por um intenso sentimento de horror, inexplicável embora insuportável, vesti-me às pressas (pois sentia que não poderia dormir mais naquela noite) e tentei arrancarme da lastimável situação em que caíra, andando rapidamente para lá e para cá pelo aposento. Havia eu dado apenas poucas voltas dessa maneira, quando um passo leve, numa escada vizinha, deteve minha atenção. Logo o reconheci como o passo de Usher. Um instante depois batia ele levemente à minha porta e entrava trazendo uma lâmpada. Sua fisionomia estava, como sempre, cadavericamente descorada; mas além disso, havia uma espécie de hilaridade louca nos seus olhos, uma estória teria evidentemente contida em toda a sua atitude. Seu ar aterrorizou-me; mas qualquer coisa era preferível à solidão que eu tinha suportado tanto tempo, e mesmo acolhi sua presença como um alívio. - E você não o viu? perguntou ele bruscamente, depois de ter olhado em torno de si, por alguns instantes, em silêncio. Não o viu, então? Mas espere! Você o verá! Assim falando, e tendo cuidadosamente protegido sua lâmpada - correu para uma das janelas e abriu-a escancaradamente para a tempestade. A fúria impetuosa da rajada que entrava quase nos elevou do solo. Era, na verdade, uma noite tempestuosa, embora asperamente bela, uma noite estranhamente singular, no seu terror e na sua beleza. Um turbilhão, aparentemente, desencadeara sua força na nossa vizinhança, pois havia freqúentes e violentas alterações na direção do vento e a densidade excessiva das nuvens (que pendiam tão baixas como a pesar sobre os torreões da casa) não nos impedia de perceber a velocidade natural com que elas se precipitavam de todos os pontos, umas contra as outras, sem se dissiparem na distância. Disse que mesmo sua excessiva densidade não nos impedia de perceber isto; contudo, não podíamos ver a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas as superfícies inferiores das vastas massas de vapor agitado, bem como todos os objetos terrestres imediatamente em torno de nós, estavam cintilando à luz sobrenatural de uma exalação gasosa, fracamente luminosa e distintamente visível, que pendia em torno da mansão, amortalhando-a. - Você não deve... você não pode contemplar isso! - disse eu, estremecendo, a Usher, enquanto o levava, com suave energia da janela para uma cadeira. - Esses espetáculos que o perturbam são simples fenômenos elétricos comuns... ou talvez tenham sua origem fantasmal nos miasmas fétidos do pântano. Fechemos esta janela; o ar está frio e é um perigo para sua saúde. Aqui está um de seus romances favoritos. Lê-lo-ei e você escutará. E assim passaremos esta terrível noite juntos. O velho volume que apanhei era o Mad Trist (A Assembléia dos Loucos) de Sir Launcelot Canning; mas eu o havia chamado favorito de Usher mais por triste brincadeira que a sério, pois, na verdade, pouca coisa havia em sua prolixidade grosseira e sem imaginação que pudesse interessar a idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, contudo, o único livro imediatamente à mão, e abriguei a vaga esperança de que a excitação que no momento agitava o hipocondríaco pudesse achar alívio (pois a história das desordens mentais está cheia de anomalias semelhantes) mesmo no exagero das loucuras que eu iria ler. A julgar, na verdade, pelo ar estranhamente tenso de vivacidade com que ele escutava ou fingia escutar as palavras da narração, eu poderia congratular-me pelo êxito do meu desígnio. Havia chegado àquele trecho muito conhecido da estória em que Etelredo, o herói do Trist, tendo procurado em vão entrar pacificamente na casa do eremita, passa a querer abrir caminho à força. Ai, como hão de recordar-se, as palavras da narrativa dizem o seguinte: E Etelredo, que era por natureza de coração valente e que se achava então ainda mais encorajado, por causa da força do vinho que tinha bebido, não esperou mais tempo para travar discussão com o eremita, que, na verdade tinha um jeito obstinado e malicioso; mas, sentindo a chuva nos ombros e temendo o desencadear-se da tempestade, ergueu sua maça e, com repetidos golpes, abriu rapidamente caminho nos tabuados da porta para sua manopla; e então, empurrando com ela firmemente, tanto arrebentou, e fendeu , e despedaçou tudo, que o barulho da madeira seca e do som oco repercurtia alarmando toda a floresta. Ao termo desta frase, sobressaltei-me e, durante um momento, me detive, pois me parecia (embora imediatamente concluísse que minha imaginação excitada me havia enganado) que de alguma parte mui distante da casa provinha, indistintamente, aos meus ouvidos o que poderia ser, na exata similaridade de seu caráter, o eco ( mas um eco certamente abafado e cavo) do som verdadeiramente estalante e rachante que Sir Launcelot havia tão caracteristicamente descrito. Foi, não resta dúvida, somente a coincidência que havia detido minha atenção, pois, entre o ranger dos caixilhos das janelas e os rumores habituais e misturados da tempestade ainda em aumento, o som em si mesmo nada tinha, decerto, que pudesse ter-me intessado ou perturbado. Continuei a estória: Mas o bom campeão Etelredo, entrando agora pela porta, ficou excessivamente enraivecido e espantado por não encontrar sinal algum do malicioso eremita ; mas em lugar dele, um dragão havia, de aspecto escamoso e monstruoso, e com uma língua chamejante, que estava de guarda diante de um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a parede pendia um escudo de bronze cintilante com esta legenda gravada: Quem aqui penetrar, conquistador será; quem matar o dragão, esse, o escudo terá. E Etelredo ergueu sua clava e descarregou-a sobre a cabeça do dragão, que diante dele e lançou seu pestilento suspiro com um berro tão horrível e rouco e ao mesmo tempo tão agudo que Etelredo foi obrigado a cobrir os ouvidos com as mãos contra o tremendo barulho, que igual jamais ele ouvira. Aqui de novo eu parei bruscamente e, então, com um sentimento de estranho espanto, pois não poderia haver dúvida alguma de que neste instante eu tivesse realmente ouvido (embora me fosse impossível distinguir de que direção ele provinha) um som baixo e aparentemente distante, mas áspero, prolongado e bem singularmente penetrante ou rascante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia já havia figurado como o berro desnatural do dragão tal como o descrevera o romancista. Opresso, como certamente estava, diante daquela segunda e muito extraordinária coincidência, por mil sensações contraditórias em que predominavam o espanto e o extremo terror, mantive ainda suficiente presença de espírito para impedir-me de excitar, por qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza alguma de que ele houvesse notado os sons em questão, embora certamente uma estranha alteração, durante os ultimos minutos, se houvesse operado na sua atitude. De uma posicão fronteira à minha ele havia gradualmente feito girar sua cadeira de modo a ficar sentado de frente para a porta do quarto; e assim eu podia avistar apenas parcialmente suas feições, embora visse que seus lábios tremiam, como se ele estivesse murmurando sons inaudíveis. A cabeça havia-lhe pendido sobre o peito e, no entanto eu sabia que ele não estava adormecido por ver-lhe os olhos escancarados e vítreos, quando lobriguei avistar-lhe o perfil. O movimento de seu corpo estava também em desacordo com essa ideia, pois ele se balançava de um lado para outro. num ondular vagaroso, embora -, constante e uniforme. Tendo rapidamente percebido tudo isso , retomei a narrativa de Sir Launcelot, que continuava desta forma: E agora o campeão, tendo escapado à terrível fúria do dragão, lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encanto que havia nele, rermoveu a carcaça do sua frente e aproximou-se corajosamente pelo pavimento de prata do castelo do lugar onde pendia o escudo sobre a parede, o qual, em verdade, não esperou que ele chegasse junta, mas caiu-lhe aos pés sobre o chão argênteo, com um retinir reboante e terrível.
Tão logo estas sílabas me saíram dos lábios, eis que - como escudo de bronze que houvesse realmente, naquele instante, caído pesadamente sobre um chão de prata - percebi um eco distinto, cavo, metálico e clangoroso, embora aparentemente abafado. Completamente nervoso, de um salto, pus-me de pé; mas o movimento compassado de balanço de Usher não se modificou. Corri para a cadeira onde ele estava sentado. Seus olhos estavam sempre fixos diante de si e por toda a sua fisionomia imperava uma rigidez de pedra. Mas quando coloquei minha mão sobre seu ombro, toda a sua pessoa estremeceu fortemente; um sorriso mórbido tremeu-lhe em torno dos lábios e eu vi que ele falava num murmúrio baixo apressado, inarticulado, como se não notasse minha presença. curvando-me sobre ele e bem de perto, sorvi, afinal, o medonho sentido de suas palavras. - Não o ouves? Sim, ouço-o, e tenho-o ouvido. Longamente…longamente… muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido, contudo não ousava… Oh, coitado de mim, miserável, desgraçado que sou! Nào ousava… não ousava falar! Nós a pusemo viva na sepultura! Não disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixão Ouvi-o faz muitos, muitos dias, e contudo não ousei . . não ousei falar, e agora, esta noite. . . Etelredo. . . ah, ah, ah!. . . o arrombamento da porta do eremita, e o estertor de agonia do dragão e o retinir do escudo!. . . Diga, antes, o abrir-se do caixão, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisão, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! para onde fugirei? Não estará ela aqui dentro em pouco? Não estara correndo a censurar-me por minha pressa? Não ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Não distingo aquele pesado e horrível bater de seu coração? Louco! E aqui soltou ele furiosamente da cadeira e gritou, bem alto, cada sílaba como se com aquele esforço estivesse exalando a própria alma: Digo-lhe que ela está, agora, por trás da porta! Como se na sobre-humana energia de sua fala se tivesse encontrado a potência de um encantamento, as enormes e antigas almofadas da porta para as quais Usher apontava escancararam, imediatamente suas pesadas mandíbulas de ébano. Foi isso obra de furiosa rajada, mas, por trás da porta, estava de pé a figura elevada e amortalhada de de Lady Madeline de Usher. Havia sangue sobre suas vestes alvas e sinais de uma luta terrível, em todas as partes de seu corpo emagrecido. Durante um instante, permaneceu ela, tremendo e vacilando, para lá e para cá, no limiar. Depois, com um grito profundo e lamentoso, caiu pesadamente para a frente, sobre seu irmão, e em seus estertores agônicos, violentos e agora finais, arrastou-o consigo para o chão, um cadáver, uma vítima dos terrores que ele mesmo antecipara. Fugi espavorido daquele quarto e daquela mansão. Ao atravessar a velha alameda, a tempestade lá fora rugia ainda, em todo o seu furor. De repente, irrompeu ao longo do caminho uma luz estranha e voltei-me para ver donde podia provir um clarão tão insólito, pois o enorme solar e as suas sombras eram tudo que havia atrás de clarão era o da lua cheia e cor de sangue, que se ia pondo e que agora brilhava vivamente através daquela fenda, outrora mal perceptível, a que me referi antes, partindo do telhado para a base do edifício, em ziguezague. Enquanto eu a olhava, aquela fenda rapidamente se alargou. . . sobreveio uma violenta rajada do turbilhão o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista …meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem... houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes. . . e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do "Solar de Usher".
(1839)
Son coeur est un luth suspendu sitôt qu'on le touche, il réssone
DE BÉRANGER
DURANTE todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, estive eu passeando, sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto do melancólico Solar de Usher. Não sei como foi, mas ao primeiro olhar sobre o edifício invadiu-me a alma um sentimento de angústia insuportável, digo insuportável porque - o sentimento não era aliviado por qualquer dessas semi-agradáveis, porque poéticas, sensações com que a mente recebe comumente até mesmo as mais cruéis imagens naturais de desolação e de terror. contemplei o panorama em minha frente - a casa simples e os aspectos simples da paisagem da propriedade, as paredes soturnas, as janelas vazias, semelhando olhos, uns poucos canteiros de caniços e uns poucos troncos brancos de árvores mortas, com extrema depressão de alma que só posso comparar, com propriedade, a qualquer sensação terrena, lembrando os instantes após o sonho de ópio. Para quem dele desperta, a amarga recaída na vida cotidiana, o tombar do véu. Havia um enregelamento, uma tontura, uma enfermidade de coração, uma irreparável tristeza no pensamento, que nenhum incitamento da imaginação podia forçar a transformar-se em qualquer coisa de sublime. Que era - parei para pensar - que era o que tanto me perturbava à contemplação do Solar Usher? Era um mistério inteiramente insolúvel; e eu não podia apreender as idéias sombrias que se acumulavam em mim ao meditar nisso. Fui forçado a recair na conclusão insatisfatória de que, se há, sem dúvida, combinações de objetos muito naturais que teem o poder de assim influenciarnos, a análise desse poder, contudo, permanece entre as considerações além de nossa argúcia. Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente dos detalhes da paisagem, dos pormenores do quadro, fosse suficiente para modificar ou talvez aniquilar sua capacidade de produzir tristes impressões; e, demorando-me nesta idéia, dirigi o cavalo para a margem escarpada de um pantanal negro e lúgubre que reluzia parado junto ao prédio, e olhei para baixo - com um tremor ainda mais forte do que antes -, para as imagens alteradas e invertidas dos caniços cinzentos e dos lívidos troncos de árvores e das janelas semelhantes a órbitas vazias. Não obstante isso, eu me propusera ficar algumas semanas naquela mansão de melancolia. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um dos meus alegres companheiros de infância; mas muitos anos havia decorrido desde o nosso último encontro. Uma carta, porém, chegara-me ultimamente, em distante região do país - uma carta dele por sua natureza estranhamente importuna, não admitia resposta que não fosse pessoal. O manuscrito dava indícios de nervosa agitação. O signatário falava de uma aguda enfermidade física, de uma perturbação mental que o oprimia e de um ansioso desejo de ver-me, como seu melhor e, em realidade, seu único amigo pessoal, a fim de lograr, pelo carinho de minha companhia, algum alívio a seus males. A maneira pela qual tudo isso e ainda mais era dito, o aparente sentimento que seu pedido demonstrava não me deixaram lugar para hesitação; e, em conseqüência, aceitei logo o que ainda considerava um convite bastante singular. Embora quando crianças tivéssemos sido companheiros íntimos, conhecia pouco meu amigo. Sua reserva sempre fora excessiva e constante. Sabia, contudo, que sua família, das mais antigas , se tornara notada desde tempos imemoriais por uma particular sensibilidade de temperamento, manifestando-se, através de longas eras, em muitas obras de arte exaltada e, ultimamente, evidenciando-se em repetidas ações de caridade munificente, embora discreta, assim como uma intensa paixão pelas sutilezas, talvez mesmo mais do que pelas belezas ortodoxas e facilmente reconhecíveis da ciência musical. Eu conhecia, também, o fato, muito digno de nota que do tronco da família Usher, apesar de sua nobre antiguidade, jamais brotara, em qualquer época, um ramo duradouro; em outras palavras, a família inteira só se perpetuava por descendência direta e assim permanecera sempre, com variações muito efêmeras e sem importância. Era essa deficiência, pensava eu, enquanto a mente examinava a concordância perfeita do aspecto da propriedade com o caráter exato de seus habitantes, e enquanto especulava sobre a possível influência que aquela, no longo decorrer dos séculos, poderia ter exercido sobre estes, era essa deficiência talvez, de um ramo colateral, e a conseqüente transmissão em linha reta, de pai a filho, do nome e do patrimônio, que afinal tanto identificaram ambos, a ponto de dissolver o título original do domínio na estranha e equivoca denominação de "Solar de Usher", denominação que parecia incluir, na mente dos camponeses que a usavam, tanto a família quanto a mansão familiar. Disse que o simples efeito de minha experiência algo pueril - a de olhar para dentro do pântano - aprofundara a primeira impressão de singularidade. Não podia haver dúvida de que a consciência do rápido aumento de minha superstição - por que não a chamaria assim? - servia principalmente para intensificar esse aumento. Tal, sabia eu de há muito, é a lei paradoxal de todos os sentimentos que têm o terror como base. E só podia ter sido por esta razão que, quando de novo ergui os olhos da imagem do edifício no paul para a própria casa, cresceu-me no espírito uma estranha fantasia - uma fantasia de fato tão ridícula que só a menciono para mostrar a viva força das sensações que me oprimiam.
Tanto eu forçara a imaginação que realmente acreditava que em torno da mansão e da propriedade pairava uma atmosfera característica de ambos e de seus imediatos arredores - atmosfera , que não tinha afinidade com o ar do céu, mas que se exalava das arvores apodrecidas e do muro cinzento e do lago silencioso um vapor pestilento e misterioso, pesado, lento, fracamente visível e de cor de chumbo. Desembaraçando o espírito do que devia ter sido um sonho examinei mais estreitamente o aspecto real do edifício. Sua feição dominante parecia ser a duma excessiva antiguidade. Fora grande o desbotamento produzido pelos séculos. Cogumelos miúdos se espalhavam por todo o exterior, pendendo das goteiras do telhado como uma fina rede emaranhada. Tudo isso, porém, estava fora de qualquer deterioração incomum. Nenhuma parte da alvenaria havia caído e parecia haver uma violenta incompatibilidade entre sua perfeita consistência de partes e o estado particular das pedras esfarinhadas. Isto me lembrava bastante a especiosa integridade desses velhos madeiramentos que durante muitos anos apodrecera em alguma adega abandonada, sem serem perturbados pelo hálito do vento exterior. Além deste índice de extensa decadência, porém dava o edifício poucos indícios de fragilidade. Talvez o olhar do observador minucioso descobrisse uma fenda mal perceptível que estendendo-se do teto da fachada, ia descendo em ziguezague pela parede, até perder-se nas soturnas águas do lago. Notando estas coisas, segui a cavalo por uma curta calçada que levava à casa. Um criado tomou meu cavalo e penetrei numa abóbada gótica do vestíbulo. Outro criado, a passos furtivos conduziu-me, então, em silêncio, através de muitos corredores escuros e intrincados, até o gabinete de seu patrão. Muito do que ia encontrando pelo caminho contribuía, não sabia eu como, para reforçar os sentimentos vagos de que já falei. Os objetos que me cercavam , as esculturas dos forros, as sombrias tapeçarias das paredes, a negrura de ébano dos soalhos e os fantasmagóricos troféus de armas que tilintavam à minha passagem precipitada eram coisas com as quais me familiarizara desde a infância e, conquanto não exitasse em reconhecê-las como assim familiares, espantava-me ainda verificar como não eram familiares as fantasias que essas imagens habituais faziam irromper. Numa das escadarias encontrei o médico da família. Seu aspecto, pensei, apresentava a expressão mista da agudeza baixa e da perplexidade. Passou por mim precipitadamente e seguiu. O criado então abriu uma porta e me levou à presença do seu patrão. O aposento em que me achei era muito amplo e elevado. As janelas eram longas, estreitas e pontudas, a uma distância tão vasta do soalho de carvalho negro que, de pé sobre este, não as poderíamos atingir. Fracos clarões de uma luz purpúrea penetravam pelos vitrais e gelosias, conseguindo tornar suficientemente distintos os objetos mais salientes em derredor; em vão, porém, o olhar lutava para alcançar os ângulos mais distantes do quarto, ou os recessos do teto esculpido e abobadado. Negras tapeçarias penduravam-se das paredes. O mobiliário, em geral, era profuso, desconfortável, antigo e desconjuntado. Viamse espalhados muitos livros e instrumentos musicais, mas nenhuma vivacidade conseguiam eles dar ao cenário. Senti que respirava uma atmosfera de tristeza. Um ar de melancolia acre, profunda e irremissível pairava ali, penetrando tudo.
À minha entrada, Usher ergueu-se de um sofá em que estivera deitado, ao comprido, e saudou-me com o vivo calor que em si tinha muito, pensei eu a princípio, de cordialidade constrangida, do esforço obrigatório do homem de sociedade entediado. Um olhar, porém, para seu rosto convenceu-me de sua perfeita sinceridade. Sentamo-nos, e, por alguns momentos, enquanto ele não falou, olhei-o com um sentimento meio de dó, meio de espanto. Certamente, homem algum jamais se modificou tão terrivelmente, em período tão breve, quanto Roderick Usher! Foi com dificuldade que cheguei a admitir a identidade do fantasma à minha frente com o companheiro de minha primeira infância. Os característicos de sua face, porém, sempre haviam sido, em todos os tempos, notáveis.
Uma compleição cadavérica; um olhar amplo, líquido e luminoso, além de qualquer comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos mas de uma curva extraordinariamente bela; nariz de delicado modelo hebraico, mas com uma amplidão de narinas incomum em tais formas; um queixo finamente modelado, denunciando, na sua falta de proeminência, a falta de energia moral; cabelos de mais tenuidade e maciez que fios de aranha; tais feições e um desenvolvimento frontal excessivo, acima das regiões das têmporas, compunham uma fisionomia que dificilmente se olvidava. E agora, pelo simples exageros dos característicos dominantes desses traços e da expressão que eles costumavam apresentar, tanto se tornara a mudança que não reconheci logo com quem falava. A lividez agora cadavérica da pele e o brilho sobrenatural do olhar, principalmente, me deixaram atônito e mesmo horrorizado. Também o cabelo sedoso crescera à vontade, sem limites; e como ele, na sua tessitura de aranhol, mais flutuava do que caia em torno da face, eu não podia, mesmo com esforço, ligar sua aparência estranha com a simples idéia de humanidade. Impressionou-me logo certa incoerência nas maneiras de meu amigo, certa inconsistência; e logo verifiquei que isso nascia de uma série de lutas fracas e fúteis para dominar uma perturbação habitual, uma excessiva agitação nervosa. Na verdade, eu me achava preparado para encontrar algo dessa natureza, não só pela carta dele como por certas recordações de fatos infantis e por conclusões derivadas de sua conformação física e temperamento especiais. Seu modo de agir era alternadamente vivo e indolente. Sua voz variava, rapidamente, de uma indecisão trêmula (quando a energia animal parecia inteiramente ausente) àquela espécie de concisão enérgica, aquela abrupta, pesada, pausada e cavernosa enunciação, àquela pronúncia carregada, equilibrada e de modulação guturalmente perfeita que se pode observar no ébrio contumaz ou no irremediável fumador de ópio durante os períodos de sua mais intensa excitação. Foi assim que ele falou do objetivo de minha visita, de seu ansioso desejo de me ver e da consolação que esperava que eu lhe trouxesse. Passou a tratar, com alguma extensão, do que concebia ser a natureza de sua doença. Era, disse ele, um mal orgânico e de família, para o qual desesperara de achar remédio. Simples afecção nervosa - acrescentou imediatamente -, que sem dúvida passaria depressa. Desenvolvia-se numa multidão de sensações anormais. Algumas destas, como ele as detalhou, me interessaram e admiraram embora talvez para isso concorressem os termos e o modo geral de sua narrativa. Sofria muito de uma acuidade mórbida dos sentidos; só o alimento mais insípido lhe era suportável; somente podia usar vestes de determinados tecidos; eram-lhe asfixiantes os perfumes de todas as flores; mesmo uma fraca luz lhe torturava os olhos e apenas sons especiais, além dos brotados dos instrumento não lhe inspiravam horror. Verifiquei que ele era um escravo agrilhoado a uma espécie anômala de terror. "Morrerei - disse ele -, devo morrer nesta loucura deplorável. Estarei perdido assim, assim e não de outra maneira. Temo os acontecimentos do futuro, não por si mesmos, mas por seus resultados. Estremeço ao pensar em algum incidente, mesmo o mais trivial, que possa influir sobre essa intolerável agitação da alma. Na verdade, não tenho horror ao perigo, exceto no seu efeito positivo: o terror. Nessa situação enervante e lastimável, sinto que chegará, mais cedo ou mais tarde, o período em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com esse fantasma lúgubre: o MEDO." Fiquei sabendo, ademais, a intervalos e por meio de frases quebradas e equivocas, de outro traço singular de sua condição mental. Ele estava preso a certas impressões supersticiosas com relação ao prédio em que morava e de onde, por muitos anos, nunca se afastara, e com relação a uma influência cuja força hipotética era exposta em termos demasiado tenebrosos para serem aqui repetidos; influência que certas particularidades apenas de forma e de substância do seu solar familiar, através de longos sofrimentos, dizia ele, exerciam sobre seu espírito; efeito que o físico das paredes e torreões cinzentos e do sombrio pântano em que esse conjunto se espelhava, afinal, produzira sobre o moral de sua existência. Ele admitia, porém, embora com hesitação, que muito da melancolia peculiar que assim o afligia podia rastrear-se até uma origem mais natural e bem mais admissível: a doença severa e prolongada, a morte - aparentemente a aproximar-se de uma irmã ternamente amada, sua única companhia durante longos anos, sua última e única parenta na terra. "O falecimento dela - dizia ele, com amargura que nunca poderei esquecer - deixá-lo-ia (a ele, o desesperançado e frágil) como o último da antiga raça dos Ushers." Enquanto ele falava, Lady Madeline (pois era assim chamada) passou lentamente para uma parte recuada do aposento e, sem ter notado minha presença, desapareceu. Olhei-a com extremo espanto não destituído de medo. E contudo achava impossível dar-me conta de tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimia, enquanto meus olhos acompanhavam seus passos que se afastavam. Quando afinal se fechou sobre ela uma porta, meu olhar buscou instintivamente, curiosamente, a fisionomia do irmão. Mas ele havia mergulhado a face nas mãos e apenas pude perceber que uma palidez bem maior do que a habitual se havia espalhado sobre os dedos emagrecidos, através dos quais se filtravam lágrimas apaixonadas A doença de Lady Madeline tinha por muito tempo zombado da habilidade de seus médicos. Uma apatia fixa, um esgotamento gradual de sua pessoa e crises freqüentes, embora transitórias, de caráter parcialmente cataléptico eram os insólitos sintomas. Até ali tinha ela suportado bravamente o peso de sua doença e não quisera ir para a cama; mas, ao fim da noite de minha chegada à casa, ela sucumbiu (como me contou seu irmão, à noite, com inexprimível agitação) ao poder esmagador do flagelo; e eu soube que o olhar que havia lançado sobre ela seria assim, provavelmente, o último e que não mais veria aquela mulher, pelo menos enquanto estivesse viva. Durante os vários dias que se seguiram, seu nome não foi pronunciado nem por Usher nem por mim, e nesse período fiquei eu ocupado em esforços tenazes para aliviar a melancolia de meu amigo. Pintávamos e líamos juntos, ou ouvíamos como em sonhos, suas improvisações estranhas, em sua eloqüente guitarra. E assim, à medida que uma intimidade cada vez maior me introduzia sem reservas nos recessos de seu espírito, mais amargamente eu percebia a vaidade de todas as minhas tentativas de alegrar uma alma da qual a escuridão , como uma qualidade inerente e positiva, se derramava sobre todos os objetos do universo moral e físico, numa incessante irradiação de trevas. Guardarei para sempre a lembrança de muitas horas solenes que passei a sós com o dono do Solar de Usher. Contudo, seria mal sucedido em qualquer tentativa de exprimir uma idéia do exato caráter dos estudos ou das ocupações a que ele me arrastava ou de que me mostrava o caminho. Uma idealidade excitada e altamente mórbida lançava um brilho sulfuroso sobre tudo. Suas lone improvisadas endechas soarão para sempre aos meus ouvidos. Entre outras coisas, recordo-me penosamente de certa adulteração e amplificação da estranha ária da derradeira valsa de Von Weber. Quanto às pinturas geradas pela sua complicada fantasia - e que iam aumentando, traço a traço, numa espécie de vaguidão que me causava os mais arrepiantes calafrios, porque eu tremia sem saber por quê -, quanto a essas pinturas (como suas imagens estão vivas agora diante de mim!), em vão tentaria delas extrair mais do que uma pequena parte que pudesse ficar nos limites das simples palavras escritas. Pela extrema simplicidade, pela nudez de seus desenhos, ele atraía e subjugava a atenção. Se jamais algum mortal pintou uma idéia, esse foi Roderick Usher. Para mim, pelo menos, nas circunstâncias que então me cercavam, erguia-se das puras abstrações que o hipocondríaco se esforçava por lançar na tela um terror de intensidade intolerável, do qual nem a sombra, eu jamais senti na contemplação dos devaneios de Fuselli,(3) certamente brilhantes, embora demasiado concretos. Uma das fantasmagóricas concepções de meu amigo, que não partilhava tão rigidamente do espírito de abstração, pode ser esboçada, embora fracamente, em palavras. Um pequeno quadro apresentava o interior de uma adega, ou túnel, imensamente longo e retangular, com paredes baixas, polidas, brancas e sem interrupção ou ornamento. Certos pontos acessórios da composição servia bem para traduzir a idéia de que essa escavação jazia a uma profundidade excessiva, abaixo da superfície da terra. Não se via qualquer saída em seu vasto percurso, e nenhuma tocha ou qualquer outra fonte artificial de luz era perceptível; e, no entanto, uma efusão de intensos raios rolava de uma extremidade à outra, tudo banhando de esplendor fantástico e inapropriado. Já me referi àquele estado mórbido do nervo acústico que tornava toda música intolerável ao paciente, exceto certos efeitos de instrumentos de corda. Foram talvez os estreitos limites a que ele assim se confinou na guitarra que deram origem, em grande parte ao caráter fantástico de suas execuções. Mas a fervorosa facilidade de seus impromptus não podia ser assim explicada. Eles devem ter sido - e eram, nas notas bem como nas palavras de suas estranhas fantasias (pois ele frequentemente se acompanhava com improvisações verbais rimadas) - o resultado daquela intensa concentração e recolhimento mental a que eu antes aludi, observados apenas em momentos especiais da mais alta excitação artificial. Guardei facilmente de memória as palavras de uma dessas rapsódias. Talvez me tenha ela impressionado mais fortemente, quando ele ma apresentou, porque, na corrente subterrânea ou mística de seu significado, imaginei perceber, pela primeira vez, que Usher tinha pleno conhecimento do vacilar de sua elevada razão sobre seu trono. Os versos intitulados "O Palácio Assombrado", eram pouco mais ou menos assim: No vale mais verdejante que anjos bons têm por morada, outrora, nobre e radiante palácio erguia a fachada. Lá, o rei era O Pensamento, e jamais um serafim as asas soltou ao vento. sobre solar belo assim.
Bandeiras de ouro, amarelas, no seu teto, flamejantes, ondulavam (foi naquelas…eras distantes !) e alado odor se evolava, quando a brisa, em horas cálidas, por sobre as muralhas pálidas suavemente perpassava.
Pelas janelas de luz o viajor a dança via espíritos que a harmonia de um alaúde tinham por lei E sobre o trono, fulgia (porfirogênito!) o Rei, com a glória, com a fidalguia, de quem tal reino conduz. Pela porta, cintilante de pérolas e rubis , ia fluindo a cada instante multidão de ecos sutis vozes de imortal beleza cujo dever singular era somente cantar do Rei a imensa grandeza. Mas torvos, lutuosos vultos assaltaram o solar! (Choremos! pois nunca o dia sobre o ermo se há de elevar!) E, em torno ao palácio, a glória que fulgente florescia e' apenas obscura história de velhos tempos sepultos! Pelas janelas, agora, em brasa, avista o viajante estranhas formas, que agita uma musica ululante; e, qual rio, se precipita pela pálida muralha uma turba que apavora, que não sorri, mas gargalha em gargalhada infinita! Lembro-me bem que as sugestões surgidas desta balada conduziram-nos a uma corrente de idéias dentro das quais se manifestou uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (pois outros homens têm pensado assim)3 como por causa da pertinácia com que a mantinha. Esta opinião, na sua forma geral, era a da sensitividade de todos os seres vegetais. Mas, na sua fantasia desordenada a idéia havia assumido um caráter mais audacioso e avançava, sob certas condições, no reino do inorgânico. Faltavam-me palavras para exprimir toda a extensão ou o grave abandono de sua persuasão. Esta crença, todavia, estava ligada (como já dei antes a entender) às cinzentas pedras do lar de seus antepassados. As condições da sensitividade tinham sido aqui, imaginava ele realizadas pelo método de colocação dessas pedras na ordem do seu arranjo, bem como na dos muitos fungos que as revestiam e das árvores mortas que se erguiam em redor, mas, acima de tudo, na longa e imperturbada duração deste arranjo e em sua reduplicação nas águas dormentes do lago. A prova - a prova da sensitividade - haveria de ver-se, dizia ele (e aqui me sobresaltei ao ouvi-lo falar), na gradual ainda que incerta condensação duma atmosfera era que lhes era própria, em torno das águas e dos muros. O resultado era discernível, acrescentava ele, naquela influencia silenciosa, embora importuna e terrível, que durante séculos tinha moldado os destinos de sua família, e fizera dele, tal como agora o via, o que ele era. Tais opiniões não necessitam de comentários e por isso nenhum farei. Nossos livros - os livros que durante anos tinham formado não pequena parte da existência mental do inválido - estavam, como é de supor-se, de perfeito acordo com esse caráter de visionário. Analisávamos juntos obras tais como Vertvert et Chartreuse, de Gresset, o Belphegor, de Maquiavel; O Céu e o Inferno, de Swedenborg; A Viagem Subterranea de Nicolau Klimm, de Quiromancia, de Robert Flud, de Jean d'Indaginé e de La Chambre, a Viagem no Azul, de Tieck, e a Cidade do Sol, de Campanella. Um volume favorito era uma pequena edição, in octavo, do Directorium Inquisitorium, do dominicano Eymeric de Gironne; e haviam passagens de Pomponius Mela, a respeito dos velhos sátiros africanos e dos egipãs, sobre as quais ficava Usher a sonhar durante horas. Seu principal deleite, porém, consistia na leitura dum livro excessivamente raro e curioso, um in quarto gótico - manual duma igreja esquecida -, Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Eclesiae Maguntinae. Não podia deixar de pensar no estranho ritual dessa obra e nna sua provável influência sobre o hipocondríaco, quando, uma noite tendo-me informado bruscamente que Lady Madeline não mais vivia, revelou sua intenção de conservar-lhe o corpo por uma quinzena (antes de seu enterramento definitivo) em uma das numerosas masmorras, dentro das possantes paredes do castelo. A A razão profana, porém, que ele dava de tão singular procedimento era dessas que eu não me sentia com liberdade de discutir. Como irmão, tinnha sido levado a essa resolução (assim me dizia ele) tendo em conta o caráter insólito da doença da morta, certas perguntas inoportunas e indiscretas da parte de seus médicos e a localização afastada e muito exposta do cemitério da família. Não negarei que, quando me veio à memória a fisionomia sinistra do individuo a quem encontrara na escada no dia de minha chegada à casa, perdi a vontade de opor-me ao que eu encarava, quando muito, como uma preocupação inocente e sem dúvida alguma muito natural. A pedido de Usher, ajudei-o pessoalmente nos arranjos para o sepultamento temporário. Tendo sido o corpo metido no nós dois sozinhos levamo-lo para o seu lugar de repouso. A adega na qual o colocamos (e que estivera tanto tempo fechada que tochas semi-amortecidas na sua atmosfera sufocante não nos permitiam um exame melhor do local) era pequena, úmida e sem nenhuma entrada para luz; achava-se a grande profundidade, logo abaixo daquela parte do edifício em que se encontrava meu qquarto de dormir. Tinha sido utilizada, ao que parece, em remotos tempos feudais, para os péssimos fins de calabouço e, em dias recentes, como paiol de pólvora ou de alguma outra substância altamente inflamável, pois uma parte do chão e todo o interior duma longa arcada por onde havíamos passado estavam cuidadosamente revestidos de cobre. A porta de ferro maciço tinha sido tambem protegida de igual modo. Quando girava nos gonzos, seu enorme peso produzia um som insolitamente agudo e irritante. Tendo depositado nosso fúnebre fardo, sobre cavaletes, naquele horrendo lugar, desviamos em parte a tampa ainda não pregada do caixão, e contemplamos o rosto do cadáver. Uma semelhaça chocante entre o irmão e a irmã deteve então, em primeiro lugar, a minha atenção; e Usher, adivinhando, talvez, meus pensamentos, murmurou umas poucas palavras, pelas quais vim a saber que a morta e ele tinham sido gêmeos e que afinidades, duma natureza mal intelegível, sempre haviam existido entre eles. Nossos olhares, porém não descansaram muito tempo sobre a morta, pois não a podiamos contemplar sem temor. A doença que assim levara ao túmulo a senhora, na plenitude de sua mocidade, havia deixado, como sempre aconntece em todas as moléstias de caráter estritamente cataléptico a ironia duma fraca coloração no seio e na face, e nos lábios aquele sorriso desconfiadamente hesitante, tão terrível na morte. Fechamos e pregamos a tampa e, depois de havermos prendido a porta de ferro, retomamos, com lassidão, o caminho de volta para os aposentos , pouco menos sombrios, da parte superior da casa. E então, tendo decorrido alguns dias de amargo pesar, uma mudança visivel operou-se nos sintomas da desordem mental de meu amigo. Suas maneiras usuais desapareceram. Suas ocupações costumeiras eram negligenciadas ou esquecidas. Vagava de quarto em quarto de passos precipitados, desiguais e sem objetivo. A palidez de sua fisionomia tomara, se possível, um tom ainda mais espectral, mas a luminosidade de seu olhar havia-se extinguido por completo. Não mais escutava aquele tom rouco de voz que ele outrora fazia às vezes ouvir, e sua fala era agora habitualmente caracterizada por gaguejo trêmulo de extremo terror. Havia vezes na verdade como de extremo terror. Havia vezes, na verdade, em que eu pensava que seu pensamento, incessantemente agitado, estava sendo trabalhado por algum segredo opressivo, lutando ele para ter necessária coragem de divulgá-lo. Às vezes, ainda, era euu forçado a considerar tudo como inexplicáveis devaneios da loucura-, pois via-o contemplar o vácuo durante horas a fio, numa atitude como se desse ouvido a algum som imaginário. Não admira que sua situação terrificasse, que me contagiasse. Senti subirem, rastejando em mim, por escalas lentas, embora incertas, as influências estranhas das fantásticas mas impressionantes superstições que ele entretinha. Foi especialmente depois de ir deitar-me, já noite alta, sete ou oito dias depois de haver sido colocado no túmulo o corpo de Lady Madeline , que experimentei o pleno poder desses sentimentos. O sono não se aproximou de meu leito, e as horas se iam desfazendo, uma a uma , Lutei para dominar com a razão o nervosismo que de mim se apoderava. Tentei levar-me a crer que muito, senão tudo aquilo que sentia, se devia à impressionante influência da sombria decoração do aposento, dos panejamentos negros e em farrapos que forçados ao movimento pelo sopro de uma tempestade nascente, ondulavam caprichosamente, para lá e para cá, nas paredes, frufrulhando, inquietas, junto aos ornatos da cama. Meus esforços, foram infrutíferos. Irreprimível tremor, pouco a pouco, me invadiu o corpo, e, por fim, sentou-se sobre meu próprio coração o incubo de uma angústia inteiramente infundada. Sacudindo-o decima de mim, em luta ofegante, ergui-me sobre os travesseiros perscrutando avidamente a intensa escuridão do quarto, - escutei não sei por quê, mas impelido por uma força instintiva - sons baixos e indefinidos, que vinham por entre as pausas da tempestade, a longos intervalos, não sabia eu de onde. Dominado por um intenso sentimento de horror, inexplicável embora insuportável, vesti-me às pressas (pois sentia que não poderia dormir mais naquela noite) e tentei arrancarme da lastimável situação em que caíra, andando rapidamente para lá e para cá pelo aposento. Havia eu dado apenas poucas voltas dessa maneira, quando um passo leve, numa escada vizinha, deteve minha atenção. Logo o reconheci como o passo de Usher. Um instante depois batia ele levemente à minha porta e entrava trazendo uma lâmpada. Sua fisionomia estava, como sempre, cadavericamente descorada; mas além disso, havia uma espécie de hilaridade louca nos seus olhos, uma estória teria evidentemente contida em toda a sua atitude. Seu ar aterrorizou-me; mas qualquer coisa era preferível à solidão que eu tinha suportado tanto tempo, e mesmo acolhi sua presença como um alívio. - E você não o viu? perguntou ele bruscamente, depois de ter olhado em torno de si, por alguns instantes, em silêncio. Não o viu, então? Mas espere! Você o verá! Assim falando, e tendo cuidadosamente protegido sua lâmpada - correu para uma das janelas e abriu-a escancaradamente para a tempestade. A fúria impetuosa da rajada que entrava quase nos elevou do solo. Era, na verdade, uma noite tempestuosa, embora asperamente bela, uma noite estranhamente singular, no seu terror e na sua beleza. Um turbilhão, aparentemente, desencadeara sua força na nossa vizinhança, pois havia freqúentes e violentas alterações na direção do vento e a densidade excessiva das nuvens (que pendiam tão baixas como a pesar sobre os torreões da casa) não nos impedia de perceber a velocidade natural com que elas se precipitavam de todos os pontos, umas contra as outras, sem se dissiparem na distância. Disse que mesmo sua excessiva densidade não nos impedia de perceber isto; contudo, não podíamos ver a lua ou as estrelas, nem havia ali qualquer clarão de relâmpagos. Mas as superfícies inferiores das vastas massas de vapor agitado, bem como todos os objetos terrestres imediatamente em torno de nós, estavam cintilando à luz sobrenatural de uma exalação gasosa, fracamente luminosa e distintamente visível, que pendia em torno da mansão, amortalhando-a. - Você não deve... você não pode contemplar isso! - disse eu, estremecendo, a Usher, enquanto o levava, com suave energia da janela para uma cadeira. - Esses espetáculos que o perturbam são simples fenômenos elétricos comuns... ou talvez tenham sua origem fantasmal nos miasmas fétidos do pântano. Fechemos esta janela; o ar está frio e é um perigo para sua saúde. Aqui está um de seus romances favoritos. Lê-lo-ei e você escutará. E assim passaremos esta terrível noite juntos. O velho volume que apanhei era o Mad Trist (A Assembléia dos Loucos) de Sir Launcelot Canning; mas eu o havia chamado favorito de Usher mais por triste brincadeira que a sério, pois, na verdade, pouca coisa havia em sua prolixidade grosseira e sem imaginação que pudesse interessar a idealidade elevada e espiritual de meu amigo. Era, contudo, o único livro imediatamente à mão, e abriguei a vaga esperança de que a excitação que no momento agitava o hipocondríaco pudesse achar alívio (pois a história das desordens mentais está cheia de anomalias semelhantes) mesmo no exagero das loucuras que eu iria ler. A julgar, na verdade, pelo ar estranhamente tenso de vivacidade com que ele escutava ou fingia escutar as palavras da narração, eu poderia congratular-me pelo êxito do meu desígnio. Havia chegado àquele trecho muito conhecido da estória em que Etelredo, o herói do Trist, tendo procurado em vão entrar pacificamente na casa do eremita, passa a querer abrir caminho à força. Ai, como hão de recordar-se, as palavras da narrativa dizem o seguinte: E Etelredo, que era por natureza de coração valente e que se achava então ainda mais encorajado, por causa da força do vinho que tinha bebido, não esperou mais tempo para travar discussão com o eremita, que, na verdade tinha um jeito obstinado e malicioso; mas, sentindo a chuva nos ombros e temendo o desencadear-se da tempestade, ergueu sua maça e, com repetidos golpes, abriu rapidamente caminho nos tabuados da porta para sua manopla; e então, empurrando com ela firmemente, tanto arrebentou, e fendeu , e despedaçou tudo, que o barulho da madeira seca e do som oco repercurtia alarmando toda a floresta. Ao termo desta frase, sobressaltei-me e, durante um momento, me detive, pois me parecia (embora imediatamente concluísse que minha imaginação excitada me havia enganado) que de alguma parte mui distante da casa provinha, indistintamente, aos meus ouvidos o que poderia ser, na exata similaridade de seu caráter, o eco ( mas um eco certamente abafado e cavo) do som verdadeiramente estalante e rachante que Sir Launcelot havia tão caracteristicamente descrito. Foi, não resta dúvida, somente a coincidência que havia detido minha atenção, pois, entre o ranger dos caixilhos das janelas e os rumores habituais e misturados da tempestade ainda em aumento, o som em si mesmo nada tinha, decerto, que pudesse ter-me intessado ou perturbado. Continuei a estória: Mas o bom campeão Etelredo, entrando agora pela porta, ficou excessivamente enraivecido e espantado por não encontrar sinal algum do malicioso eremita ; mas em lugar dele, um dragão havia, de aspecto escamoso e monstruoso, e com uma língua chamejante, que estava de guarda diante de um palácio de ouro com chão de prata. E sobre a parede pendia um escudo de bronze cintilante com esta legenda gravada: Quem aqui penetrar, conquistador será; quem matar o dragão, esse, o escudo terá. E Etelredo ergueu sua clava e descarregou-a sobre a cabeça do dragão, que diante dele e lançou seu pestilento suspiro com um berro tão horrível e rouco e ao mesmo tempo tão agudo que Etelredo foi obrigado a cobrir os ouvidos com as mãos contra o tremendo barulho, que igual jamais ele ouvira. Aqui de novo eu parei bruscamente e, então, com um sentimento de estranho espanto, pois não poderia haver dúvida alguma de que neste instante eu tivesse realmente ouvido (embora me fosse impossível distinguir de que direção ele provinha) um som baixo e aparentemente distante, mas áspero, prolongado e bem singularmente penetrante ou rascante, a exata reprodução daquilo que minha fantasia já havia figurado como o berro desnatural do dragão tal como o descrevera o romancista. Opresso, como certamente estava, diante daquela segunda e muito extraordinária coincidência, por mil sensações contraditórias em que predominavam o espanto e o extremo terror, mantive ainda suficiente presença de espírito para impedir-me de excitar, por qualquer observação, a sensibilidade nervosa de meu companheiro. Não tinha certeza alguma de que ele houvesse notado os sons em questão, embora certamente uma estranha alteração, durante os ultimos minutos, se houvesse operado na sua atitude. De uma posicão fronteira à minha ele havia gradualmente feito girar sua cadeira de modo a ficar sentado de frente para a porta do quarto; e assim eu podia avistar apenas parcialmente suas feições, embora visse que seus lábios tremiam, como se ele estivesse murmurando sons inaudíveis. A cabeça havia-lhe pendido sobre o peito e, no entanto eu sabia que ele não estava adormecido por ver-lhe os olhos escancarados e vítreos, quando lobriguei avistar-lhe o perfil. O movimento de seu corpo estava também em desacordo com essa ideia, pois ele se balançava de um lado para outro. num ondular vagaroso, embora -, constante e uniforme. Tendo rapidamente percebido tudo isso , retomei a narrativa de Sir Launcelot, que continuava desta forma: E agora o campeão, tendo escapado à terrível fúria do dragão, lembrando-se do escudo de bronze e da quebra do encanto que havia nele, rermoveu a carcaça do sua frente e aproximou-se corajosamente pelo pavimento de prata do castelo do lugar onde pendia o escudo sobre a parede, o qual, em verdade, não esperou que ele chegasse junta, mas caiu-lhe aos pés sobre o chão argênteo, com um retinir reboante e terrível.
Tão logo estas sílabas me saíram dos lábios, eis que - como escudo de bronze que houvesse realmente, naquele instante, caído pesadamente sobre um chão de prata - percebi um eco distinto, cavo, metálico e clangoroso, embora aparentemente abafado. Completamente nervoso, de um salto, pus-me de pé; mas o movimento compassado de balanço de Usher não se modificou. Corri para a cadeira onde ele estava sentado. Seus olhos estavam sempre fixos diante de si e por toda a sua fisionomia imperava uma rigidez de pedra. Mas quando coloquei minha mão sobre seu ombro, toda a sua pessoa estremeceu fortemente; um sorriso mórbido tremeu-lhe em torno dos lábios e eu vi que ele falava num murmúrio baixo apressado, inarticulado, como se não notasse minha presença. curvando-me sobre ele e bem de perto, sorvi, afinal, o medonho sentido de suas palavras. - Não o ouves? Sim, ouço-o, e tenho-o ouvido. Longamente…longamente… muitos minutos, muitas horas, muitos dias tenho-o ouvido, contudo não ousava… Oh, coitado de mim, miserável, desgraçado que sou! Nào ousava… não ousava falar! Nós a pusemo viva na sepultura! Não disse que meus sentidos eram agudos? Agora eu lhe conto que ouvi seu primeiro fraco movimento, no fundo do caixão Ouvi-o faz muitos, muitos dias, e contudo não ousei . . não ousei falar, e agora, esta noite. . . Etelredo. . . ah, ah, ah!. . . o arrombamento da porta do eremita, e o estertor de agonia do dragão e o retinir do escudo!. . . Diga, antes, o abrir-se do caixão, e o rascar dos gonzos de ferro de sua prisão, e o debater-se dela dentro da arcada de cobre da masmorra! Oh! para onde fugirei? Não estará ela aqui dentro em pouco? Não estara correndo a censurar-me por minha pressa? Não ouvi eu o tropel de seus passos na escada? Não distingo aquele pesado e horrível bater de seu coração? Louco! E aqui soltou ele furiosamente da cadeira e gritou, bem alto, cada sílaba como se com aquele esforço estivesse exalando a própria alma: Digo-lhe que ela está, agora, por trás da porta! Como se na sobre-humana energia de sua fala se tivesse encontrado a potência de um encantamento, as enormes e antigas almofadas da porta para as quais Usher apontava escancararam, imediatamente suas pesadas mandíbulas de ébano. Foi isso obra de furiosa rajada, mas, por trás da porta, estava de pé a figura elevada e amortalhada de de Lady Madeline de Usher. Havia sangue sobre suas vestes alvas e sinais de uma luta terrível, em todas as partes de seu corpo emagrecido. Durante um instante, permaneceu ela, tremendo e vacilando, para lá e para cá, no limiar. Depois, com um grito profundo e lamentoso, caiu pesadamente para a frente, sobre seu irmão, e em seus estertores agônicos, violentos e agora finais, arrastou-o consigo para o chão, um cadáver, uma vítima dos terrores que ele mesmo antecipara. Fugi espavorido daquele quarto e daquela mansão. Ao atravessar a velha alameda, a tempestade lá fora rugia ainda, em todo o seu furor. De repente, irrompeu ao longo do caminho uma luz estranha e voltei-me para ver donde podia provir um clarão tão insólito, pois o enorme solar e as suas sombras eram tudo que havia atrás de clarão era o da lua cheia e cor de sangue, que se ia pondo e que agora brilhava vivamente através daquela fenda, outrora mal perceptível, a que me referi antes, partindo do telhado para a base do edifício, em ziguezague. Enquanto eu a olhava, aquela fenda rapidamente se alargou. . . sobreveio uma violenta rajada do turbilhão o inteiro orbe do satélite explodiu imediatamente à minha vista …meu cérebro vacilou quando vi as possantes paredes se desmoronarem... houve um longo e tumultuoso estrondar, semelhante à voz de mil torrentes. . . e o pântano profundo e lamacento, a meus pés, fechou-se, lúgubre e silentemente, sobre os destroços do "Solar de Usher".
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