ai vai um conto de Isaac Asimov, dos que compõem o famosíssimo livro (agora mais, graças ao cinema) Eu, Robô. faz parte de minhas leituras na infância, que me fizeram ser um meninão chegando já aos quarenta...
INTRODUÇÃO – Susan Calvin
Olhei para minhas anotações e não gostei delas. Passara três dias na U.S. Robôs e bem poderia tê-los passado em casa, lendo a Enciclopédia Telúrica.
Disseram-me que Susan Calvin nascera no ano de 1982, o que significava ter atualmente setenta e cinco anos de idade. Todos sabiam. De forma bastante adequada, a U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. também tinha setenta e cinco anos, pois fora exatamente no ano de nascimento da Dra. Calvin que Lawrence Robertson dera entrada nos primeiros documentos de incorporação da firma que eventualmente viria a ser o mais estranho gigante industrial da história humana. Bem, todos também sabiam disso.
Aos vinte anos, Susan Calvin tornara parte no seminário particular de Psicomatemática, no qual o Dr. Alfred Lanning, da U.S. Robôs, fez a demonstração do primeiro robô móvel equipado com voz. Era um robô grande, feio e desajeitado, recendendo a óleo lubrificante e destinado a trabalhar nas minas projetadas para Mercúrio. Mas era capaz de falar e fazer sentido.
Susan nada dissera durante o seminário; também não tomou parte na acalorada polêmica que se seguiu a ele. Era uma jovem fria, de feições comuns e desprovida de encanto, que tratava de proteger-se contra um mundo do qual não gostava, por meio de um semblante inexpressivo e de uma inteligência hipertrofiada.
Todavia, enquanto observava e escutava as discussões, sentiu os primeiros indícios de um frio entusiasmo.
Obteve o diploma de bacharel na Universidade de Colúmbia, em 2003, e iniciou um curso de doutorado em cibernética.
Tudo o que fora realizado em meados do século XX em matéria de "máquinas calculadoras" foi revolucionado por Robertson e seus banhos cerebrais positrônicos. Os quilômetros de circuitos e fotocélulas deram lugar ao globo esponjoso de platinum-irídio de tamanho aproximado de um cérebro humano.
Susan aprendeu a calcular os parâmetros necessários para fixar as possíveis variáveis no interior do "cérebro positrônico"; a projetar no papel esses "cérebros", de modo que as reações aos estímulos pudessem ser previstas com precisão.
Em 2008, obteve seu diploma de doutorado e ingressou no quadro da U.S. Robôs, na qualidade de "robopsicóloga", tornando-se a primeira grande especialista na nova ciência.
Lawrence Robertson ainda era o presidente da organização; Alfred Lanning tornara-se diretor de pesquisas.
Durante os cinqüenta anos seguintes, Susan Calvin viu a direção do progresso humano mudar – e dar um grande salto à frente. Agora, ia aposentar-se – pelo menos, procurava retirar-se do trabalho tanto quanto possível. No mínimo, permitiria que o nome de outra pessoa fosse colocado na porta de seu antigo escritório.
Isso, essencialmente, era o que eu conseguira saber. Tinha comigo uma longa lista de seus trabalhos e das patentes registradas em seu nome; possuía os detalhes cronológicos de suas promoções... Em resumo: sabia todas as minúcias de seu curriculum vitae profissional.
Mas não era isso o que eu desejava.
Precisava muito mais informações para o artigo que preparava para a Interplanetary Press Muito mais. Foi o que expliquei a ela.
– Dra. Calvin, – disse-lhe, da maneira mais atenciosa possível – na opinião do público, a senhora e a U.S. Robôs são uma única coisa. Sua aposentadoria marcará o fim de uma época e...
– E você deseja abordar o ponto de vista do interesse humano? – interrompeu ela, sem sorrir.
Creio que ela nunca sorri. Mas seus olhos se mostraram penetrantes, embora não zangados; senti que seu olhar me atravessava de lado e compreendi que, para ela, eu era invulgarmente transparente; todos eram.
Respondi : – Exato.
– Interesse humano em robôs? – É uma contradição.
– Não, doutora. Não nos robôs; na senhora.
– Bem, já houve quem me chamasse de robô. Certamente já lhe disseram que não sou humana.
Era verdade, mas não haveria vantagem alguma em confirmar.
Ela se ergueu da poltrona. Não era alta e parecia frágil. Segui-a até a janela e olhamos para fora.
Os escritórios e fábricas da U.S. Robôs constituíam uma pequena cidade, espaçosa e bem planejada. Parecia achatada como uma fotografia aérea.
– Logo que vim para cá, ocupei um pequeno escritório em um prédio exatamente onde fica agora o posto dos bombeiros – informou ela, apontando. – Foi demolido antes de você nascer.
Eu partilhava o escritório com três outras pessoas. Possuía, então, apenas meia mesa. Construíamos nossos robôs em um só prédio. A produção era de três robôs por semana. Agora, veja como somos.
– Cinqüenta anos é muito tempo – comentei eu, tolamente.
– Não quando se olha para trás, a fim de vê-los – replicou ela. – Então, indaga-se como desapareceram tão depressa.
Voltou à mesa de trabalho e sentou-se. Seu rosto não precisava de expressão para fazê-la parecer triste.
– Quantos anos tem? – indagou.
– Trinta e dois – respondi.
– Então, não se lembra de como o mundo era sem os robôs. Houve uma época em que a humanidade encarava o universo sozinha, sem um amigo. Agora, o homem possui criaturas para ajudá-lo; criaturas mais fortes do que ele – mais fiéis, mais úteis e absolutamente devotadas a ele. A espécie humana já não está sozinha. Já encarou o assunto sob este prisma?
– Temo que não. Posso citar suas palavras?
– Pode. Para você, um robô é um robô. Engrenagens e metal; eletricidade e posítrons. Mente e ferro! Feitos pelo homem! Caso necessário, destruídos pelo homem! Mas você não trabalhou com eles, de modo que não os conhece. São uma raça mais limpa e melhor do que a nossa.
Tentei induzi-la a prosseguir. – Gostaríamos de ouvir alguma das coisas que a senhora pode contar; de conhecer sua opinião sobre os robôs. A Interplanetary Press alcança todo o Sistema Solar. A audiência potencial é de três bilhões de pessoas, Dra. Calvin. Elas deveriam saber o que a senhora poderia contar sobre os robôs.
Não era necessário induzi-la. Ela nem mesmo me ouviu, mas prosseguiu na direção correta. – Poderiam saber desde o começo. Venderam-se robôs para uso na Terra, então – antes mesmo do meu tempo. Naturalmente, tratava-se, na época, de robôs que não falavam. Posteriormente, os robôs tornaram-se mais humanos e surgiu a oposição. Como é natural, os sindicatos opunham-se à competição que os robôs ofereciam aos homens em questão de trabalho. Vários setores da opinião pública tinham objeções de ordem religiosa e supersticiosa. Foi tudo bem ridículo e inútil. Não obstante, existiu.
Eu registrava todas as suas palavras em minha máquina taquigráfica de bolso, procurando ocultar os movimentos de meus dedos. Com um pouco de prática, é possível registrar acuradamente sem retirar o aparelho do bolso.
– Veja o caso de Robbie, por exemplo – disse ela. – Não cheguei a conhecê-lo. Foi desmontado um ano antes de meu ingresso na companhia. Já estava irremediavelmente obsoleto. Mas vi a menina no museu...interrompeu-se.
Preferi não dizer coisa alguma. Deixei que seus olhos se enevoassem e sua mente voltasse ao passado. Era um longo tempo a percorrer...
– ...Ouvi a história mais tarde; sempre que nos chamavam de blasfemos e criadores de demônios, eu me lembrava dele. Robbie era um robô mudo; não tinha voz. Foi fabricado e vendido em 1996. Era a época anterior à extrema especialização, de modo que foi vendido como ama-seca...
– Como o quê?
– Como ama-seca...
1. ROBBIE
– Noventa e oito, noventa e nove, cem! Glória retirou o bracinho gorducho de sobre os olhos e ficou imóvel por um instante, franzindo o nariz e piscando contra a luz do sol. Então, tentando observar ao mesmo tempo em todas as direções, recuou alguns passos, afastando-se cautelosamente da árvore em que estivera recostada.
Esticou o pescoço para estudar as possibilidades de um grupo de arbustos à direita e depois recuou ainda mais, a fim de obter um melhor ângulo de visão sobre o recesso escuro da folhagem. O silêncio era profundo, exceto pelo incessante zumbir dos insetos e pelo trinado ocasional de algum pássaro bastante valente para enfrentar o sol de meio-dia.
Glória fez uma careta de aborrecimento. – Aposto que ele entrou em casa, e eu já lhe disse um milhão de vezes que isso não vale. Com os lábios fortemente apertados e a testa franzida numa expressão severa, a menina se encaminhou resolutamente para a casa de dois pavimentos situada além da alameda. Tarde demais, ouviu o barulho de folhas atrás de si, logo seguido pelo clum-clump característico e ritmado dos pés metálicos de Robbie. Girou nos calcanhares a tempo de ver seu companheiro triunfante emergir do esconderijo e correr a toda velocidade para a árvore que servia de pique.
Glória gritou, consternada: – Espere, Robbie! Assim não vale, Robbie! Você prometeu não correr até eu encontrá-lo!
Seus pezinhos - não conseguiam ganhar terreno sobre os passos gigantescos de Robbie. Então, a três metros da árvore, o andar de Robbie transformou-se em mero arrastar de pés, e Glória, num último e desesperado impulso de velocidade, passou ofegante por ele e tocou a casca do tronco que servia de pique.
Radiante, a menina voltou-se para o fiel Robbie e, com a maior das ingratidões, recompensou-o pelo sacrifício: zombou cruelmente de sua incapacidade para correr. – Robbie não sabe correr! – gritou, com toda a força de seus pulmões de oito anos. – Posso ganhar sempre dele! Posso ganhar sempre dele!
Cantava as frases ritmicamente, em tom agudo. Naturalmente, Robbie não respondeu – pelo menos, não com palavras. Em lugar disso, fingiu que estava correndo, afastando-se lentamente, até que Glória começou a correr atrás dele, enquanto o robô esquivava-se no último instante, obrigando-a a descrever círculos, inutilmente, com os bracinhos esticados abanando no ar.
– Robbie! – gritava ela. – Fique quieto! E seu riso saía em impulsos ofegantes.
Afinal, ele girou nos calcanhares e agarrou a menina, fazendo-a rodar. Glória viu o mundo de cabeça para baixo, sobre um fundo azulado, com as árvores verdes parecendo querer alcançar o abismo. Em seguida, sentou-se novamente na grama, apoiada à perna metálica de Robbie e ainda segurando um duro dedo de metal.
Depois de algum tempo, recobrou o fôlego. Mexeu inutilmente no cabelo desgrenhado, imitando vagamente um gesto de sua mãe, e contorceu-se, a fim de verificar se o vestido estava rasgado.
Deu uma palmada nas costas de Robbie. – Menino mau! Vai apanhar!
Robbie encolheu-se, escondendo o rosto com as mãos, de modo que ela se viu forçada a acrescentar: – Não, Robbie. Não vou bater em você. Mas, de qualquer maneira, agora é a vez de eu me esconder, porque você tem pernas mais compridas e prometeu não correr para o pique até eu encontrá-la.
Robbie assentiu com a cabeça – um pequeno paralelepípedo de arestas e cantos arredondados, ligado por uma haste curta e flexível a outro paralelepípedo semelhante, mas muito maior, que lhe servia de torso – e virou-se obedientemente para a árvore.
Uma fina película metálica recobriu-lhe os olhos e do interior de seu corpo veio um tique-taque ritmado e sonoro.
– Agora, não espie... e não pule os números – avisou Glória, antes de correr para esconder-se.
Os segundos foram contados com regularidade invariável e, ao centésimo tique, a película metálica se ergueu.
Os brilhantes olhos vermelhos de Robbie examinaram as redondezas. Pousaram um momento sobre uma mancha colorida atrás de uma pedra. Robbie avançou alguns passos, convencendo-se de que Glória estava agachada atrás da pedra.
Vagarosamente, mantendo-se sempre entre Glória e a árvore do pique, ele se encaminhou para o esconderijo. Quando Glória estava bem à vista e nem mesmo poderia imaginar que ainda não fôra descoberta, Robbie esticou um braço em direção a ela e bateu com o outro de encontro à perna, produzindo um ruído metálico. Glória se ergueu, amuada. – Você espiou! – declarou, com tremenda injustiça. – Além disso, já estou cansada. de brincar de esconder. Quero andar a cavalo.
Porém Robbie, magoado com a injusta acusação, sentou-se cuidadosamente e meneou a cabeça de um lado para outro.
Imediatamente, Glória mudou de tom, tentando convencê-lo gentilmente: – Vamos, Robbie. Eu estava brincando quando disse que você espiou. Deixe-me dar uma voltinha em você.
Todavia, Robbie não estava disposto a se deixar levar com tanta facilidade. Olhou teimosamente para o alto e sacudiu a cabeça com ênfase ainda maior.
– Por favor, Robbie. Por favor, deixe-me dar uma voltinha em você – insistiu Glória, passando os bracinhos rosados pelo pescoço dele e apertando com força.
Então, mudando repentinamente de humor, afastou-se. – Se você não deixar, vou chorar – declarou, contorcendo terrivelmente o rosto num movimento preparatório.
O malvado Robbie não deu maior atenção à horrível possibilidade e sacudiu a cabeça pela terceira vez.
Glória julgou necessário usar seu maior trunfo. – Está bem – declarou em tom suave. – Se você não deixar, não lhe contarei mais histórias. Mais nenhuma...
Robbie cedeu imediata e incondicionalmente ante tal ultimato, balançando afirmativamente a cabeça até que o metal de seu pescoço chegou a zunir. Com grande cuidado, ergueu a menina e colocou-a sobre seus ombros largos e lisos.
As supostas lágrimas de Glória desapareceram como por encanto e ela soltou gritinhos de prazer. A pele metálica de Robbie, mantida à temperatura constante de vinte e um graus pelas bobinas de alta resistência existentes em seu interior, produzia na menina uma sensação confortável, ao mesmo tempo em que o som alto que seus saltos faziam de encontro ao peito do robô lhe parecia encantador.
– Você é um planador, Robbie; um planador grande e prateado. Abra os braços, Robbie... Tem de abrir, para ser um planador. Era uma lógica irrefutável. Os braços de Robbie passaram a ser asas pegando as correntes aéreas e ele se transformou num planador prateado.
Glória torceu a cabeça do robô para a direita. Ele se inclinou, fazendo uma curva. Glória equipou o planador com um motor que fazia "Brrrr" e depois com armas que faziam "Bum!" e "Shshshhhsh". Os piratas estavam perseguindo e os atiradores do planador entraram em ação.
Os piratas foram varridos do céu.
– Peguei outro! ... Mais dois! – exclamava a menina.
Então, ela ordenou pomposamente: – Mais depressa, homens! A munição está acabando!
Glória apontava por cima do ombro com coragem indomável e Robbie passou a ser uma nave espacial, atravessando o vácuo em aceleração máxima.
Ele correu através do campo até um trecho de grama alta situado no lado oposto, onde parou tão subitamente que a passageira não conteve um grito. Então, Robbie deixou-a cair suavemente no espesso tapete verde formado pela grama.
Glória ofegava, sem fôlego, murmurando repetidamente: – Foi ótimo!
Robbie esperou que ela recuperasse o fôlego e puxou levemente um de seus cachos.
– Quer alguma coisa? – indagou Glória, abrindo muito os olhos numa expressão de perplexidade que não conseguiu iludir a enorme "ama-seca". Robbie puxou-lhe o cabelo com um pouco mais de força.
– Oh, já sei. Quer uma história.
Robbie assentiu rapidamente.
– Qual delas?
Robbie ergueu um dedo, descrevendo um semicírculo.
A menina protestou. – Outra vez? Já lhe contei a "Gata Borralheira" um milhão de vezes! Não está cansado dela?... É uma história para bebês.
Outro semicírculo.
– Oh, está bem.
Glória concentrou-se, passando mentalmente em revista os detalhes da história (bem como as variações criadas por ela própria, que eram numerosas), e começou: – Está pronto? Bem...
Era uma vez uma menina muito linda chamada Ella. Tinha uma madrasta terrivelmente malvada e duas irmãs de criação muito feias e cruéis. Então...
Glória estava chegando ao clímax da história : chegava a meia-noite e tudo estava voltando ao sórdido original.
Robbie escutava atentamente, com os olhos brilhando... quando houve uma interrupção. – Glória!
Era o brado agudo de uma mulher que estivera chamando não uma, mas várias vezes; tinha o tom nervoso de alguém cuja impaciência já se transformava em preocupação.
– Mamãe está chamando – disse Glória, não muito satisfeita. – É melhor você me carregar de volta para casa, Robbie.
Robbie obedeceu alegremente, pois havia algo nele que julgava melhor obedecer à Sra. Weston sem a menor hesitação. O pai de Glória raramente estava em casa durante o dia, exceto aos domingos – como agora, por exemplo –, e, quando isso acontecia, mostrava-se uma pessoa jovial e compreensiva. A mãe de Glória, porém, era uma fonte de inquietação para Robbie, que sempre sentia um impulso para esquivar-se das vistas dela.
A Sra. Weston avistou-os tão logo eles surgiram acima dos compridos tufos de grama e retirou-se para o interior da casa, a fim de esperá-los.
– Fiquei rouca de tanto chamar, Glória – disse, em tom severo. – Onde estava?
– Estava com Robbie – respondeu a menina, com voz trêmula. – Contava-lhe a história da "Gata Borralheira" e esqueci a hora do almoço.
– Bem, é uma pena que Robbie também tenha esquecido – comentou a Sra. Weston. Então, como se apercebendo da presença do robô, virou-se bruscamente para ele. – Pode ir, Robbie. Ela não precisa de você agora. – E acrescentou em tom brutal: – E não volte até que eu o chame.
Robbie girou nos calcanhares para retirar-se, mas hesitou quando a voz de Glória se ergueu em sua defesa: – Espere, mamãe. Você tem de deixar Robbie ficar. Não terminei a história da "Gata Borralheira" para ele. Prometi contar toda e não acabei.
– Glória!
– Mamãe, prometo que ele ficará tão quieto que a senhora nem perceberá que ele está aqui. Ele pode sentar naquela cadeira, ali no canto, sem dizer uma palavra. Isto é, sem fazer nada. Não é, Robbie?
Robbie, em resposta, assentiu com a cabeça, balançando-a uma vez.
– Glória, se você não parar imediatamente com isso, ficará uma semana inteira sem ver Robbie!
A menina baixou a cabeça. – Está bem! Mas a "Gata Borralheira" é a história preferida de Robbie e eu não terminei de contar... E ele gosta tanto...
O robô saiu com um andar desconsolado e Glória engoliu um soluço.
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George Weston sentia-se completamente feliz e satisfeito. Tinha o hábito de ficar à vontade nas tardes de domingo. Um lauto e gostoso almoço na barriga; um sofá velho, macio e confortável onde deitar; um exemplar do Times; chinelos nos pés e peito nu – como alguém podia deixar de ficar à vontade?
Portanto, não ficou contente quando sua mulher entrou. Após dez anos de vida de casado, ainda era inominavelmente tolo de continuar a amá-la e não havia dúvida de que sempre gostava de vê-la – mas, apesar de tudo, as tardes de domingo, logo depois do almoço, eram sagradas para ele e sua idéia de um sólido conforto era ser deixado em completa solidão durante duas ou três horas.
Em conseqüência, fixou firmemente os olhos no mais recente relatório sobre a Expedição Lefebre-Yoshida a Marte (que deveria decolar da Base Lunar e tinha possibilidades de realmente alcançar êxito) e ignorou a presença da esposa.
A Sra. Weston esperou pacientemente durante dois minutos e impacientemente por mais dois. Afinal, quebrou o silêncio.
– George!
– Hum?
– George, eu disse! Quer largar esse jornal e olhar para mim?
O jornal caiu ao chão e Weston virou o rosto cansado para fitar a mulher.
– O que é, querida?
– Você sabe o que é, George. Trata-se de Glória e daquela máquina terrível.
– Que máquina terrível?
– Ora, não finja que não sabe de que estou falando. É aquele robô que Glória chama de Robbie. Ele não a deixa por um só instante.
– Bem, por que haveria de deixar? Não deve deixá-la. E certamente, não é uma máquina terrível. É o melhor robô que se pode comprar e pode ter absoluta certeza de que me custou meio ano de ordenado. Valeu a pena, porém; ele é muito mais inteligente do que a metade de meus empregados do escritório.
Fez menção de pegar novamente o jornal, mas sua esposa foi mais rápida, apanhando-o primeiro. – Escute, George. Não admito que minha filha seja entregue a uma máquina... e não me interessa o quanto ela seja inteligente. Não tem alma. Ninguém sabe o que pode estar pensando. Uma criança não foi feita para ser guardada por um objeto de metal.
Weston franziu a testa. – Desde quando você decidiu isso? Há dois anos que ele está com Glória e só agora você se preocupa.
– No início, era diferente. Uma novidade; tirava-me uma carga dos ombros e... era uma coisa elegante. Mas agora, não sei... Os vizinhos...
– Ora, o que têm os vizinhos a ver com o assunto? Ouça: pode-se ter infinitamente mais confiança em um robô do que em uma ama-seca humana. Na realidade, Robbie foi construído exclusivamente com uma finalidade: fazer companhia a uma criança pequena. Toda a sua "mentalidade" foi criada com esse único objetivo. Ele não pode deixar de ser fiel, carinhoso e bom. É uma máquina – feita assim. O que é bem mais do que pode dizer a respeito dos seres humanos.
– Mas poderia acontecer algo errado. Algum... algum... – a Sra. Weston era um tanto ignorante a respeito dos órgãos internos de um robô – ... alguma pecinha poderá soltar-se e aquela coisa horrível ficar maluca e... e... Interrompeu-se, não conseguindo dizer em voz alta um pensamento tão óbvio.
– Tolice – negou Weston, com um involuntário estremecimento nervoso. – Isso é completamente ridículo. Na época em que compramos Robbie, tivemos uma longa conversa sobre a Primeira Lei da Robótica. Você sabe que é impossível para um robô fazer mal a um ser humano; que muito antes de acontecer o bastante para alterar a Primeira Lei, o robô se tornaria completamente inoperante. Trata-se de uma impossibilidade matemática. Além disso, eu chamo um engenheiro da U.S. Robôs duas vezes por ano e ele faz uma revisão completa no pobre aparelho. Ora, não há maior possibilidade de acontecer algo errado com Robbie do que eu ou você ficarmos birutas de uma hora para outra. Na verdade, as probabilidades são consideravelmente menores. Além disso, como é que você vai tirá-la de Glória?
Fez um novo gesto inútil para apoderar-se do jornal, mas a mulher atirou raivosamente o Times para a outra sala.
– É justamente isso, George! Ela não brinca com mais ninguém. Há dúzias de meninos e meninas com quem poderia fazer amizade, mas ela se recusa. Nem mesmo chega perto deles, a menos que eu a obrigue. Uma menina não deve crescer assim. Você quer que ela seja normal, não quer? Quer que ela seja capaz de representar seu papel na sociedade.
– Você está com medo de fantasmas, Grace. Finja que Robbie é um cachorro. Já vi centenas de crianças que gostam mais do cachorro do que do próprio pai.
– Um cachorro é diferente, George. Precisamos livrar-nos daquela coisa horrível! Você pode vendê-la de volta à companhia. Já indaguei a respeito e sei que pode.
– Indagou? Ora, escute aqui, Grace, não vamos bancar idiotas. Ficaremos com o robô até Glória crescer um pouco mais e não quero que se volte a tocar no assunto. E saiu da sala, amuado.
Duas noites mais tarde, a Sra. Weston foi receber o marido à porta. – Você precisa escutar-me, George. Há inquietação na vizinhança.
– A respeito de quê? – perguntou Weston, entrando no banheiro e impedindo toda e qualquer resposta com o barulho da água.
A Sra. Weston esperou. Afinal, disse : – A respeito de Robbie.
Weston saiu do banheiro com uma toalha, o rosto vermelho e zangado. – De que está falando?
– Oh, a coisa vem crescendo cada vez mais. Procurei fechar os olhos e fingir que não via, mas recuso-me a continuar assim. A maioria dos moradores da aldeia considera Robbie perigoso. Não permitem que as crianças cheguem perto de nossa casa à noite.
– Nós confiamos nossa filha a ele.
– Bem, as pessoas não são razoáveis a respeito de coisas como essa.
– Que vão para o diabo!
– Dizer isso não resolve o problema. Sou obrigada a fazer minhas compras na aldeia. Sou obrigada a encontrá-los todos os dias. Atualmente, o assunto de robôs é pior ainda nas cidades grandes. Nova York acaba de baixar uma portaria proibindo todos os robôs de aparecer nas ruas entre o anoitecer e o amanhecer.
– Muito bem. Mas não podem impedir que mantenhamos um robô em nossa casa... Grace, isto é mais uma de suas campanhas. Estou reconhecendo os indícios. Mas não adianta. A resposta ainda é: não! Vamos ficar com Robbie!
Apesar disso, ele ainda amava a esposa – e, o que era pior, ela sabia disso. Afinal, George Weston era apenas um homem – coitado – e utilizou ao máximo todos os artifícios a seu alcance para tentar dobrá-la, mas inutilmente.
Dez vezes na semana seguinte, Weston gritou: – Robbie fica – e não adianta insistir!
Mas, de cada vez, o grito era mais fraco e acompanhado por um gemido mais alto e mais agoniado.
Afinal, chegou o dia em que Weston, com um sentimento de culpa, aproximou-se da filha e sugeriu um belo espetáculo de visovox na aldeia.
Glória bateu palmas, radiante. – Robbie pode ir conosco?
– Não, querida – respondeu o pai, franzindo mentalmente a testa ao som de sua própria voz. – Não permitem que robôs visitem o visovox... Mas pode contar tudo a Robbie, quando voltarmos para casa. Gaguejou a dizer a última frase e virou o rosto para o lado.
Glória voltou da aldeia transbordando de entusiasmo, pois o visovox fôra realmente um espetáculo maravilhoso.
Esperou que seu pai guardasse o carro-jato na garagem subterrânea.
– Veja só quando eu contar tudo a Robbie, papai. Ele adoraria o espetáculo... Especialmente quando Francis Fran estava recuando com tanto cuidado, esbarrou num dos Homens-Leopardo e teve de fugir... Riu novamente.
– Papai, existem mesmo Homens-Leopardo na Lua?
– Provavelmente não – replicou Weston, distraído. – É apenas uma invenção divertida.
Sabia que não poderia demorar muito tempo com o carro. Seria obrigado e enfrentar a realidade.
Glória atravessou o gramado correndo. – Robbie!... Robbie! Então, estacou ao ver um lindo collie que a fitava com sérios olhos castanhos e abanava a cauda, parado na varanda.
– Oh, que cachorro bonito! – exclamou Glória, subindo os degraus, aproximando-se cautelosamente e afagando o cão. – É para mim, papai?
A Sra. Weston juntou-se a eles. – É, sim, Glória. É bonito... macio e peludo. É muito manso. E gosta de meninas.
– Ele sabe brincar?
– Claro. Sabe fazer uma porção de truques. Gostaria de ver algum?
– Agora mesmo. Quero que Robbie veja, também...Robbie! Parou, hesitante, e franziu a testa. – Aposto que ele se trancou no quarto porque ficou zangado por não ter ido comigo ao visovox. Você precisa explicar a ele, papai. Talvez Robbie não acredite em mim, mas acreditará no que o senhor disser.
Weston apertou os lábios. Olhou para a esposa, mas esta tinha os olhos voltados em outra direção.
Glória virou-se precipitadamente e desceu correndo os degraus do porão, gritando: – Robbie!... Venha ver o que papai e mamãe trouxeram para mim! É um cachorro!
Regressou um minuto depois, amedrontada. – Mamãe, Robbie não está no quarto. Onde está ele?
Não houve resposta e George Weston tossiu, mostrando-se subitamente muito interessado em uma nuvem que passava no céu. A voz de Glória tremia, à beira das lágrimas: – Onde está Robbie, mamãe?
A Sra. Weston sentou-se e puxou suavemente a filha para si. – Não fique triste, Glória. Creio que Robbie se foi.
– Foi embora? Para onde? Para onde ele foi, mamãe?
– Ninguém sabe, querida. Ele apenas foi embora. Procuramos, procuramos por ele e não conseguimos encontrá-lo.
– Quer dizer que ele nunca mais voltará? Os olhos da menina estavam arregalados de horror.
– Talvez o encontremos logo. Vamos continuar a procurá-lo. Enquanto isso, você pode brincar com o seu lindo cachorro novo. Olhe para ele! Chama-se "Relâmpago" e sabe...
Mas as lágrimas transbordavam dos olhos de Glória. – Não quero esse cachorro horrível... Quero Robbie. Quero que vocês encontrem Robbie para mim. Sua tristeza tornou-se maior do que as palavras e ela prorrompeu num choro alto e sentido.
A Sra. Weston olhou para o marido, procurando ajuda, mas ele se limitava a mexer distraidamente os pés no mesmo lugar, sem tirar o olhar ardente da nuvem que passava no céu.
A mulher curvou-se, na tarefa de consolar a filha. – Por que está chorando, Glória? Robbie era apenas uma máquina – uma máquina velha e feia. Ele nem era vivo.
– Ele não era nenhuma máquina! – gritou Glória ferozmente, esquecendo-se da gramática. – Ele era uma "pessoa", como eu e você – e era meu "amigo". Quero Robbie de volta. Oh, mamãe, quero Robbie de volta!
A mãe gemeu, considerando-se derrotada, e deixou Glória entregue à própria dor.
– Deixe-a chorar à vontade – disse ao marido. – As tristezas infantis nunca duram muito. Dentro de alguns dias, ela esquecerá que aquele horrível robô chegou a existir.
Mas o tempo provou que as previsões da Sra. Weston eram por demais otimistas. É bem verdade que Glória parou de chorar, mas também deixou de sorrir. A cada dia que passava, tornava-se mais calada e sombria. Gradativamente, aquela atitude de passiva infelicidade foi vencendo a resistência da Sra. Weston e a única coisa que a impedia de voltar atrás era a impossibilidade de admitir a derrota perante o marido.
Certa noite, a Sra. Weston irrompeu na sala de estar, sentou-se e cruzou os braços, parecendo ferver de raiva.
O marido esticou o pescoço, a fim de olhá-la por cima do jornal. – O que é agora, Grace?
– É a menina, George. Fui obrigada a devolver o cachorro, hoje. Glória declarou que positivamente não suportava vê-lo. Ela está me levando a um colapso nervoso.
Weston largou o jornal, com um brilho esperançoso no olhar. – Talvez... talvez devamos trazer Robbie de volta. É possível, como você sabe. Entrarei em contato com...
– Não! – interrompeu a mulher, furiosa. – Não admito. Não vamos ceder tão facilmente. Minha filha não será criada por um robô, mesmo que leve anos para esquecê-la.
Com ar desapontado, Weston tornou a pegar o jornal. – Mais um ano assim e ficarei de cabelos brancos antes do tempo.
– Você ajuda muito, George – foi a gélida resposta. – O que Glória necessita é de uma mudança de ambiente. É claro que aqui ela não poderá esquecer Robbie. Como seria possível, quando cada pedra ou árvore faz com que ela se lembre dele? E realmente a situação mais idiota de que já ouvi falar. Imagine: uma menina definhando por causa da perda de um robô.
– Bem, não se desvie do assunto. Qual a mudança de ambiente que você anda planejando?
– Vamos levá-la para Nova York.
– Para a cidade?! Em agosto?! Escute: sabe como é Nova York em agosto? É insuportável!
– Milhões de pessoas a suportam.
– Não têm um lugar como este onde possam morar. Se não fossem obrigados a permanecer em Nova York, não ficariam lá.
– Bem, nós temos de ficar lá. E digo-lhe que partiremos agora – ou tão logo possamos tomar as providências necessárias. Na cidade, Glória encontrará bastante interesse e amigos para reanimar-se e esquecer aquela máquina.
– Oh, Deus! – gemeu a parte mais fraca do casal. – Aquele calçamento fumegante!
– Somos obrigados – foi a resposta inabalável. – Glória perdeu dois quilos e meio no último mês e, para mim, a saúde de minha filhinha é mais importante do que o seu conforto.
– É uma pena que você não tenha pensado na saúde de sua filhinha antes de privá-la de seu robô de estimação.
Glória demonstrou imediatos sinais de melhora ao ser informada da futura mudança para a cidade. Falava pouco no assunto, mas quando o fazia era sempre com viva expectativa. Voltou a sorrir e a comer com um apetite que se aproximava do antigo.
A Sra. Weston felicitava-se, deliciada, e não perdia oportunidade para gozar o triunfo perante o marido, que continuava a se mostrar cético.
– Veja, George: ela está ajudando a arrumar a bagagem e tagarela como se não tivesse a menor preocupação neste mundo. É exatamente o que eu lhe disse: tudo o que precisamos é algo que sirva de substituto para os outros interesses.
– Hum... – foi a resposta pessimista. – Espero que sim.
Os preparativos preliminares foram terminados rapidamente. Tornaram-se providências para preparar a casa na cidade e contrataram um casal para tomar conta da casa no campo. Quando, afinal, chegou o dia da viagem, Glória voltara ao que era antes e não fez a menor menção a respeito de Robbie.
Em ótimo humor, a família tomou um táxi-giro até o aeroporto. (Weston preferiria usar seu próprio giro, mas este tinha apenas dois lugares e não havia espaço para a bagagem) e embarcou no grande avião.
– Venha, Glória – disse a Sra. Weston. – Reservei- lhe um lugar perto da janela, de modo que você possa apreciar o panorama.
Glória correu alegremente pelo corredor central e foi achatar o nariz num oval branco de encontro ao vidro grosso e transparente da janela, observando tudo com uma intensidade que aumentou quando o barulho do motor chegou ao interior do aparelho. Era jovem demais para ter medo quando o solo pareceu cair, como se largado por um alçapão e, de repente, ela sentiu-se como se tivesse duas vezes o seu próprio peso; mas tinha idade suficiente para ficar vivamente interessada no que se passava.
Somente quando o solo pareceu transformar-se em uma longínqua colcha de pequenos retalhos, Glória descolou o nariz da janela e virou-se para a mãe.
– Chegaremos logo à cidade, mamãe? – perguntou ela, esfregando o nariz frio com a palma da mão e observando com interesse enquanto a mancha de condensação formada por seu hálito na vidraça diminuía lentamente de tamanho, até desaparecer totalmente.
– Em cerca de meia hora, querida. Então, com um leve traço de ansiedade, acrescentou: – Você está contente por ir, não está? Não acha que será feliz na cidade, com todos aqueles prédios, gente e coisas para ver? Iremos todos os dias ao visovox ver os espetáculos, e também ao circo, à praia e...
– Sim, mamãe – foi a resposta pouco entusiástica de Glória.
Naquele instante, o avião passou por sobre um banco de nuvens e Glória sentiu-se imediatamente absorvida pelo incomum espetáculo de ver as nuvens embaixo de si.
Em seguida, viram-se novamente em céu aberto, muito azul, e a menina voltou-se novamente para a mãe, com um súbito e misterioso ar de que conhece um segredo.
– Sei por que estamos indo para a cidade, mamãe.
– Sabe? – indagou a Sra. Weston, intrigada. – Por quê?
– Vocês não me disseram porque queriam fazer uma surpresa, mas eu sei.
Por um instante, perdeu-se na admiração de sua própria perspicácia. Então, riu alegremente. – Vamos a Nova York para acharmos Robbie, não é?... com detetives. As palavras da menina apanharam George Weston em meio a um gole de água, com resultados desastrosos. Houve uma espécie de engasgo estrangulado, seguido por um gêiser de água e logo depois por uma série de tossidos asfixiados. Quando tudo terminou, ele se manteve de pé, encharcado, com o rosto vermelho, muito aborrecido.
A Sra. Weston manteve a compostura, mas quando Glória repetiu a pergunta em tom mais ansioso, ela verificou que seu humor fôra um tanto abalado.
– Talvez – replicou bruscamente. – Agora, sente-se e fique aquieta, pelo amor de Deus!
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Nova York, no ano de 1998, era, mais do que nunca em sua história, um verdadeiro paraíso para os turistas. Os pais de Glória logo se deram conta do fato e procuraram aproveitá-lo ao máximo.
Em virtude de ordens expressas da esposa, George Weston tomou providência para que seus negócios corressem bem sem sua presença durante mais ou menos um mês, a fim de ter tempo livre para o que ele definiu como "mimar Glória até as raias da ruína". Como tudo o que Weston fazia, a tarefa foi cumprida de modo eficiente, completo e prático. Antes que se passasse um mês, nada que pudesse ser feito deixou de sê-lo.
Glória foi levada até o topo do Roosevelt Building, com oitocentos metros de altura, para admirar com espanto o estranho panorama de telhados, que se misturavam a distância com os campos de Long Island e as planícies de Nova Jersey. Visitaram os zôos, onde Glória observou com uma deliciosa sensação de medo o "leão vivo de verdade" (embora um tanto desapontada por verificar que os zeladores alimentavam a fera com bifes crus, em lugar de seres humanos, como ela esperava) e pediu peremptória e insistentemente para ver a baleia.
Os vários museus receberam sua dose de atenção, bem como os parques, as praias e o aquário.
Foi levada rio Hudson acima em um vapor de turismo aparelhado à moda arcaica da "Louca Década de Vinte". Fez uma viagem de exibição à estratosfera, onde o céu assumia uma profunda cor púrpura, as estrelas pareciam maiores e brilhavam mais, e a terra enevoada lá embaixo parecia uma enorme tigela côncava. Foi levada num submarino com paredes de vidro às profundezas do Long Island Sound, onde, em meio a um mundo esverdeado e ondulante, belas e curiosas criaturas marinhas vinham fitá-la com olhar fixo e mortiço antes de fugirem repentinamente com movimentos sinuosos.
Em nível mais prosaico, a Sra. Weston levou a filha às grandes lojas de departamentos, onde a menina pôde maravilhar-se em outro tipo de terra encantada.
Na realidade, depois de decorrido quase um mês, os Westons estavam convencidos de haver feito tudo o que era concebível para afastar de uma vez por todas da mente de Glória a lembrança do robô desaparecido – mas não tinham certeza de haver conseguido.
O fato era que, onde quer que Glória fosse, demonstrava o mais absorto e concentrado interesse por quaisquer robôs que estivessem presentes. Por mais excitante ou novo para seus olhos infantis que pudessem ser os espetáculos diante dela, Glória, voltava-se imediatamente para o lado ao perceber de relance um movimento metálico.
A Sra. Weston fazia o possível para manter Glória afastada de todos os robôs.
E o caso chegou ao clímax, afinal, por ocasião do episódio no Museu da Ciência e da Indústria. O museu anunciara um "programa infantil" especial, durante o qual seriam exibidas amostras da magia científica, em escala especial para a mentalidade infantil. Obviamente, os Westons colocaram o programa em sua lista de "prioridade".
Enquanto os Westons estavam sentados, totalmente absortos na contemplação dos feitos de um poderoso eletroímã, a Sra. Weston subitamente percebeu que Glória não mais estava a seu lado. O pânico inicial cedeu lugar a uma calma decisão. A Sra. Weston conseguiu a ajuda de três serventes do museu e deu início a uma busca minuciosa.
Todavia, é claro que Glória não era do tipo que erra sem destino.
Levando-se em consideração sua idade, era uma menina desusadamente decidida e objetiva, digna herdeira da mãe no que se relaciona com essas características. Ao passar pelo terceiro andar, vira um grande cartaz anunciando: "Para Ver o Robô Falante, Siga por Aqui". Tendo soletrado silenciosamente os dizeres e verificando que seus pais não pareciam querer seguir a direção certa, tornou a providência óbvia: depois de esperar pela oportuna distração momentânea dos pais, afastou-se calmamente e seguiu a direção indicada pelo letreiro. O robô falante era um tour de force, um aparelho totalmente desprovido de utilidade prática, possuindo apenas valor publicitário. Uma vez por hora, um grupo escoltado por um guia postava-se diante dele e sussurrava cuidadosamente uma série de perguntas ao engenheiro especializado que estava encarregado do robô. As perguntas que o engenheiro julgava adequadas aos circuitos do robô eram transmitidas por ele ao robô falante. Era um tanto desinteressante. Pode ser bom saber que o quadrado de quatorze é cento e noventa e seis, que a temperatura ambiente no momento é de setenta graus Fahrenheit e a pressão atmosférica é de 30,02 polegadas de mercúrio, que o peso atômico do sódio é 23 – mas não é realmente preciso um robô para isso. Especialmente quando se trata de massa pesada e totalmente imóvel de fios e bobinas, ocupando um espaço superior a vinte metros quadrados. Poucas pessoas davam-se ao trabalho de voltar para vê-lo, mas uma adolescente estava sentada tranqüilamente em um banco, esperando pela terceira vez. Era a única pessoa no salão quando Glória ali entrou. Glória não olhou para a jovem. Naquele momento, outro ser humano não passava de uma coisa indigna de ser levada em consideração. Reservava toda a sua atenção para aquele grande aparelho sobre rodas. Hesitou por um instante, assustada. Não parecia com qualquer robô que ela tivesse visto antes. Cautelosa, ainda em dúvida, ergueu a voz fininha: – Por favor, Sr. Robô, o senhor é o robô falante?
Embora não tivesse a certeza, parecia-lhe que um robô que falava era digno de um alto grau de deferência. (A jovem sentada no banco permitiu que uma expressão de intensa concentração surgisse em seu rosto magro, de feições comuns. Tirou da bolsa um caderninho de anotações e começou a escrever com rápidos sinais de taquigrafia).
Houve um zumbido de engrenagens bem lubrificadas e uma voz de timbre mecânico respondeu gravemente, com palavras desprovidas de sotaque ou entonação: – Eu... sou... o... robô... que... fala.
Glória fitou-o tristemente. Ele falava, mas o som vinha do interior. Não havia um rosto com o qual falar.
– O senhor pode me ajudar, Sr. Robô? – indagou ela.
O robô falante era feito para responder perguntas e só lhe haviam sido feitas perguntas às quais ele podia responder. Conseqüentemente, tinha grande confiança em sua própria capacidade.
– Eu... posso... ajudar... você.
– Muito obrigada, Sr. Robô. O senhor viu Robbie?
– Quem... é... Robbie?
– Ele é um robô, Sr. Robô – disse Glória, pondo-se na ponta dos pés. – Ele é quase tão alto quanto o senhor, só que mais alto, Sr. Robô, e é muito bonzinho. Ele tem cabeça, sabe. Quero dizer... o senhor não tem, mas ele tem, Sr. Robô.
O robô falante ficou para trás.
– Um... robô?
– Sim senhor, um robô como o senhor, só que ele não sabe falar, é claro... e parece uma pessoa de verdade.
– Um... robô... como... eu?
– Sim, Sr. Robô.
A única resposta do robô falante foi um ruído de estática, ocasionalmente acompanhado por algum som incoerente. A generalização radical que lhe fôra apresentada, isto é, sua existência, não como um objeto único e especial, mas como membro de um grupo geral, fôra demais para ele. Portando-se lealmente, procurara abranger o novo conceito e queimara meia dúzia de bobinas. Pequenos sinais de alarma começaram a zumbir.
(A adolescente retirou-se nesse momento. Já colhera as informações suficientes para seu trabalho de Física – 1 sobre "Aspectos Práticos da Robótica". Foi o primeiro dentre os muitos trabalhos elaborados por Susan Calvin sobre o assunto.) Glória permaneceu à espera da resposta da máquina, ocultando cuidadosamente sua impaciência. De repente, ouviu um grito atrás de si: – Lá está ela!
Reconheceu a voz da mãe. – O que está fazendo aqui, menina feia? – exclamou a Sra. Weston, cuja ansiedade dissolveu-se imediatamente em impaciência. – Sabe que quase matou seu pai e sua mãe de susto? Por que fugiu?
O engenheiro entrara correndo, arrancando os cabelos de raiva, querendo saber quem, dentre o grupo que começava a juntar-se no salão, mexera na máquina.
– Não sabem ler os avisos?! – berrava. – Não podem entrar aqui sem um guia!
Glória ergueu a voz consternada, dominando o barulho: – Só vim ver o robô falante, mamãe. Pensei que ele talvez soubesse onde está Robbie, pois ambos são robôs.
Então, ao lembrar-se outra vez de Robbie, prorrompeu numa cachoeira de lágrimas. – Preciso encontrar Robbie, mamãe. Preciso.
A Sra. Weston soltou um gemido abafado. – Oh, meu Deus! Vamos para casa, George. Isto é mais do que eu posso suportar.
Naquela mesma tarde, George Weston ausentou-se durante várias horas. Na manhã seguinte, aproximou-se da esposa com uma expressão suspeita, que parecia ocultar uma confiante complacência.
– Tive uma idéia, Grace.
– Sobre o quê? – foi a resposta desinteressada.
– Sobre Glória.
– Você não vai sugerir que compremos de volta aquele robô!
– Não. É claro que não.
– Então diga logo. Acho melhor eu lhe dar ouvidos. Nada do que eu fiz parece ter dado certo.
– Muito bem. Eis o que tenho pensado: todo o problema com Glória é que ela pensa em Robbie como uma pessoa, e não como uma máquina. É natural que não consiga esquecê-lo. Ora, se conseguirmos convencê-la de que Robbie nada mais é do que um monte de aço e cobre sob forma de chapas e fios, com a eletricidade lhe servindo de fluido vital, por quanto tempo perdurarão suas saudades? Trata-se de um ataque psicológico, se você consegue entender meu ponto de vista.
– Como pretende conseguir isso?
– É muito simples. Onde pensa que fui ontem? Convenci Robertson, da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A., a programar uma visita completa às instalações da companhia, amanhã. Nós três iremos juntos e quando terminarmos a visita, Glória estará persuadida de que um robô não é um ser vivo.
Os olhos da Sra. Weston abriram-se lentamente e neles surgiu um brilho muito semelhante a uma súbita admiração.
– Ora, George, é uma ótima idéia.
George Weston estufou o peito, forçando os botões do colete. – É o único tipo de idéias que eu tenho.
O Sr. Struthers era um gerente-geral consciencioso e, naturalmente, inclinado a ser um tanto tagarela. O plano combinado por George Weston resultou, portanto, em uma visita completa, detalhadamente explicada – talvez até demais – a todos os pontos das instalações. Todavia, a Sra. Weston não ficou entediada. Na verdade, fez com que o cicerone parasse várias vezes e pediu-lhe que repetisse suas explicações em linguagem mais simples, a fim de que Glória pudesse entendê-las.
Sob a influência de tal apreciação de sua capacidade narrativa, o Sr. Struthers expandiu-se jovialmente e tornou-se ainda mais comunicativo, se é que possível.
George Weston, por sua vez, demonstrava crescente impaciência. – Perdão, Struthers – disse ele, interrompendo uma lição a respeito de células fotoelétricas – vocês não têm uma seção da fábrica onde só é utilizada a mão-de-obra dos robôs?
– Hum? Oh, sim! Sim, naturalmente! – respondeu o gerente, sorrindo para a Sra. Weston. – Não deixa de ser uma espécie de círculo vicioso: robôs criando mais robôs. Naturalmente, não empregamos o método como uma prática generalizada. Em primeiro lugar, os sindicatos jamais permitiriam que o fizéssemos. Mas podemos fabricar uns poucos robôs utilizando exclusivamente a mão-de-obra dos robôs, simplesmente como uma espécie de experiência científica. Como podem ver – e bateu com o pince-nez na palma da mão, para reforçar o argumento – o que os sindicatos não compreendem, e digo isso como alguém que sempre teve muita simpatia para com o movimento trabalhista em geral, é que o advento do robô, embora implicando, de início, em uma certa deslocação do trabalho, será inevitavelmente...
– Sim, Struthers – tornou a interromper George Weston – mas, falando da seção da fábrica a que você se refere... podemos visitá-la? Tenho a certeza de que seria muito interessante.
– Oh, sim! Sim, naturalmente! – afirmou o Sr. Struthers, recolocando o pince-nez com um movimento convulsivo e puxando um pigarro embaraçado. – Sigam-me, por favor.
Manteve-se relativamente calado, enquanto guiava os três visitantes por um comprido corredor e desceu um lance de escadas. Então, ao entrarem num enorme salão bem iluminado, que zumbia com a atividade metálica, suas comportas tornaram a abrir-se e o jorro de explicações voltou a brotar.
– Eis aí! – exclamou, orgulhoso. – Somente robôs! Cinco homens trabalham como supervisores e nem mesmo permanecem neste recinto. No período de cinco anos – isto é, desde que iniciamos este projeto – não houve um único acidente. Naturalmente, os robôs montados aqui são relativamente simples, mas...
Há muito tempo a voz do gerente-geral tornara-se apenas um murmúrio um tanto tranqüilizante aos ouvidos de Glória. Na sua opinião toda aquela visita parecia bastante desinteressante e sem motivação, embora houvesse muitos robôs nas dependências da fábrica. Entretanto, nenhum deles se parecia com Robbie e ela os encarava com indisfarçado desprezo.
Naquele recinto, porém, ela notou que não havia gente. Então, seu olhar incidiu sobre um grupo de seis ou sete robôs que trabalhavam afanosamente em torno de uma mesa redonda situada quase no centro do salão. Seus olhos se esbugalharam, incrédulos de surpresa. O salão era enorme. Ela não podia ver bem, mas um dos robôs se parecia com... parecia com... era ele!
– Robbie!
O grito de Glória rasgou o ar e um dos robôs junto à mesa vacilou, largando a ferramenta que segurava. Glória quase enlouqueceu de alegria. Esgueirando-se por baixo do corrimão de proteção, antes que seus pais pudessem contê-la, ela pulou agilmente para o chão, um pouco abaixo.
Correu em direção a Robbie, agitando os braços, com o cabelo esvoaçando.
Os três adultos, horrorizados, ficaram petrificados onde estavam, vendo o que a menina excitada não conseguia ver: enorme trator aproximava-se pesadamente pelo caminho que lhe fôra traçado.
Passou-se uma fração de segundo antes que Weston recobrasse a presença de espírito, mas foram frações de segundo irrecuperáveis, pois agora seria impossível alcançar Glória.
Embora Weston pulasse o corrimão numa tentativa desesperada, tratava-se obviamente de um esforço inútil. O Sr. Struthers fez sinais frenéticos para que os supervisores detivessem o tratar; mas eles eram apenas humanos e levavam algum tempo para agir.
Apenas Robbie agiu imediatamente e com precisão. Com as pernas metálicas devorando o espaço que o separava de sua pequena dona, o robô partiu da direção aposta. Então, tudo aconteceu a um só tempo. Com um amplo movimento do braço, Robbie apanhou Glória sem diminuir em um átimo sua velocidade e, conseqüentemente, deixando-a completamente sem fôlego devido à pancada. Weston, sem compreender tudo o que se passava, sentiu, mais do que viu, Robbie passar por ele e estacou subitamente, confuso. O tratar cruzou a trajetória de Glória meio segundo depois que Robbie, tendo avançado mais três metros, parou com um ruído metálico de seus pés contra o chão.
Glória recobrou o fôlego, submetida a uma série de abraços fervorosos por parte dos pais, e voltou-se ansiosamente para Robbie. No que lhe dizia respeito, nada acontecera, exceto que ela encontrara o amigo.
Mas a expressão da Sra. Weston alterou-se de alivio para severa suspeita. Virou-se para o marido e, a despeito de sua aparência descabelada e um tanto descomposta, conseguiu parecer bastante controlada.
– Você engendrou tudo isto, não é?
George Weston enxugou a testa com um lenço. Sua mão tremia e seus lábios só conseguiam curvar-se num sorriso fraco e extremamente pálido.
A Sra. Weston prosseguiu o raciocínio.
– Robbie não foi projetado para trabalhar em construção ou engenharia. Não poderia prestar-se a esse tipo de serviço. Você providenciou deliberadamente para que ele fosse colocado aqui, a fim de que Glória o encontrasse. Foi você quem o fez!
– Bem, fui eu – confessou Weston. – Mas, Grace, como poderia eu adivinhar que a reunião seria tão violenta. E Robbie salvou a vida de Glória; você tem de admitir isso. Não pode mandá-lo embora outra vez.
Grace Weston refletiu. Virando-se para Glória e Robbie, observou-os distraidamente por alguns instantes. Glória abraçava o pescoço do robô de um modo que teria estrangulado qualquer criatura que não fosse de metal e murmurava frases incoerentes num frenesi histérico. Os braços de aço-cromo de Robbie(capazes de transformar uma barra de aço com duas polegadas de diâmetro em um parafuso) envolviam delicada e carinhosamente a menina; seus olhos brilhavam com um tom vermelho muito profundo.
– Bem – disse a Sra. Weston, afinal – creio que ele pode ficar conosco até enferrujar.
FIM
Olhei para minhas anotações e não gostei delas. Passara três dias na U.S. Robôs e bem poderia tê-los passado em casa, lendo a Enciclopédia Telúrica.
Disseram-me que Susan Calvin nascera no ano de 1982, o que significava ter atualmente setenta e cinco anos de idade. Todos sabiam. De forma bastante adequada, a U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A. também tinha setenta e cinco anos, pois fora exatamente no ano de nascimento da Dra. Calvin que Lawrence Robertson dera entrada nos primeiros documentos de incorporação da firma que eventualmente viria a ser o mais estranho gigante industrial da história humana. Bem, todos também sabiam disso.
Aos vinte anos, Susan Calvin tornara parte no seminário particular de Psicomatemática, no qual o Dr. Alfred Lanning, da U.S. Robôs, fez a demonstração do primeiro robô móvel equipado com voz. Era um robô grande, feio e desajeitado, recendendo a óleo lubrificante e destinado a trabalhar nas minas projetadas para Mercúrio. Mas era capaz de falar e fazer sentido.
Susan nada dissera durante o seminário; também não tomou parte na acalorada polêmica que se seguiu a ele. Era uma jovem fria, de feições comuns e desprovida de encanto, que tratava de proteger-se contra um mundo do qual não gostava, por meio de um semblante inexpressivo e de uma inteligência hipertrofiada.
Todavia, enquanto observava e escutava as discussões, sentiu os primeiros indícios de um frio entusiasmo.
Obteve o diploma de bacharel na Universidade de Colúmbia, em 2003, e iniciou um curso de doutorado em cibernética.
Tudo o que fora realizado em meados do século XX em matéria de "máquinas calculadoras" foi revolucionado por Robertson e seus banhos cerebrais positrônicos. Os quilômetros de circuitos e fotocélulas deram lugar ao globo esponjoso de platinum-irídio de tamanho aproximado de um cérebro humano.
Susan aprendeu a calcular os parâmetros necessários para fixar as possíveis variáveis no interior do "cérebro positrônico"; a projetar no papel esses "cérebros", de modo que as reações aos estímulos pudessem ser previstas com precisão.
Em 2008, obteve seu diploma de doutorado e ingressou no quadro da U.S. Robôs, na qualidade de "robopsicóloga", tornando-se a primeira grande especialista na nova ciência.
Lawrence Robertson ainda era o presidente da organização; Alfred Lanning tornara-se diretor de pesquisas.
Durante os cinqüenta anos seguintes, Susan Calvin viu a direção do progresso humano mudar – e dar um grande salto à frente. Agora, ia aposentar-se – pelo menos, procurava retirar-se do trabalho tanto quanto possível. No mínimo, permitiria que o nome de outra pessoa fosse colocado na porta de seu antigo escritório.
Isso, essencialmente, era o que eu conseguira saber. Tinha comigo uma longa lista de seus trabalhos e das patentes registradas em seu nome; possuía os detalhes cronológicos de suas promoções... Em resumo: sabia todas as minúcias de seu curriculum vitae profissional.
Mas não era isso o que eu desejava.
Precisava muito mais informações para o artigo que preparava para a Interplanetary Press Muito mais. Foi o que expliquei a ela.
– Dra. Calvin, – disse-lhe, da maneira mais atenciosa possível – na opinião do público, a senhora e a U.S. Robôs são uma única coisa. Sua aposentadoria marcará o fim de uma época e...
– E você deseja abordar o ponto de vista do interesse humano? – interrompeu ela, sem sorrir.
Creio que ela nunca sorri. Mas seus olhos se mostraram penetrantes, embora não zangados; senti que seu olhar me atravessava de lado e compreendi que, para ela, eu era invulgarmente transparente; todos eram.
Respondi : – Exato.
– Interesse humano em robôs? – É uma contradição.
– Não, doutora. Não nos robôs; na senhora.
– Bem, já houve quem me chamasse de robô. Certamente já lhe disseram que não sou humana.
Era verdade, mas não haveria vantagem alguma em confirmar.
Ela se ergueu da poltrona. Não era alta e parecia frágil. Segui-a até a janela e olhamos para fora.
Os escritórios e fábricas da U.S. Robôs constituíam uma pequena cidade, espaçosa e bem planejada. Parecia achatada como uma fotografia aérea.
– Logo que vim para cá, ocupei um pequeno escritório em um prédio exatamente onde fica agora o posto dos bombeiros – informou ela, apontando. – Foi demolido antes de você nascer.
Eu partilhava o escritório com três outras pessoas. Possuía, então, apenas meia mesa. Construíamos nossos robôs em um só prédio. A produção era de três robôs por semana. Agora, veja como somos.
– Cinqüenta anos é muito tempo – comentei eu, tolamente.
– Não quando se olha para trás, a fim de vê-los – replicou ela. – Então, indaga-se como desapareceram tão depressa.
Voltou à mesa de trabalho e sentou-se. Seu rosto não precisava de expressão para fazê-la parecer triste.
– Quantos anos tem? – indagou.
– Trinta e dois – respondi.
– Então, não se lembra de como o mundo era sem os robôs. Houve uma época em que a humanidade encarava o universo sozinha, sem um amigo. Agora, o homem possui criaturas para ajudá-lo; criaturas mais fortes do que ele – mais fiéis, mais úteis e absolutamente devotadas a ele. A espécie humana já não está sozinha. Já encarou o assunto sob este prisma?
– Temo que não. Posso citar suas palavras?
– Pode. Para você, um robô é um robô. Engrenagens e metal; eletricidade e posítrons. Mente e ferro! Feitos pelo homem! Caso necessário, destruídos pelo homem! Mas você não trabalhou com eles, de modo que não os conhece. São uma raça mais limpa e melhor do que a nossa.
Tentei induzi-la a prosseguir. – Gostaríamos de ouvir alguma das coisas que a senhora pode contar; de conhecer sua opinião sobre os robôs. A Interplanetary Press alcança todo o Sistema Solar. A audiência potencial é de três bilhões de pessoas, Dra. Calvin. Elas deveriam saber o que a senhora poderia contar sobre os robôs.
Não era necessário induzi-la. Ela nem mesmo me ouviu, mas prosseguiu na direção correta. – Poderiam saber desde o começo. Venderam-se robôs para uso na Terra, então – antes mesmo do meu tempo. Naturalmente, tratava-se, na época, de robôs que não falavam. Posteriormente, os robôs tornaram-se mais humanos e surgiu a oposição. Como é natural, os sindicatos opunham-se à competição que os robôs ofereciam aos homens em questão de trabalho. Vários setores da opinião pública tinham objeções de ordem religiosa e supersticiosa. Foi tudo bem ridículo e inútil. Não obstante, existiu.
Eu registrava todas as suas palavras em minha máquina taquigráfica de bolso, procurando ocultar os movimentos de meus dedos. Com um pouco de prática, é possível registrar acuradamente sem retirar o aparelho do bolso.
– Veja o caso de Robbie, por exemplo – disse ela. – Não cheguei a conhecê-lo. Foi desmontado um ano antes de meu ingresso na companhia. Já estava irremediavelmente obsoleto. Mas vi a menina no museu...interrompeu-se.
Preferi não dizer coisa alguma. Deixei que seus olhos se enevoassem e sua mente voltasse ao passado. Era um longo tempo a percorrer...
– ...Ouvi a história mais tarde; sempre que nos chamavam de blasfemos e criadores de demônios, eu me lembrava dele. Robbie era um robô mudo; não tinha voz. Foi fabricado e vendido em 1996. Era a época anterior à extrema especialização, de modo que foi vendido como ama-seca...
– Como o quê?
– Como ama-seca...
1. ROBBIE
– Noventa e oito, noventa e nove, cem! Glória retirou o bracinho gorducho de sobre os olhos e ficou imóvel por um instante, franzindo o nariz e piscando contra a luz do sol. Então, tentando observar ao mesmo tempo em todas as direções, recuou alguns passos, afastando-se cautelosamente da árvore em que estivera recostada.
Esticou o pescoço para estudar as possibilidades de um grupo de arbustos à direita e depois recuou ainda mais, a fim de obter um melhor ângulo de visão sobre o recesso escuro da folhagem. O silêncio era profundo, exceto pelo incessante zumbir dos insetos e pelo trinado ocasional de algum pássaro bastante valente para enfrentar o sol de meio-dia.
Glória fez uma careta de aborrecimento. – Aposto que ele entrou em casa, e eu já lhe disse um milhão de vezes que isso não vale. Com os lábios fortemente apertados e a testa franzida numa expressão severa, a menina se encaminhou resolutamente para a casa de dois pavimentos situada além da alameda. Tarde demais, ouviu o barulho de folhas atrás de si, logo seguido pelo clum-clump característico e ritmado dos pés metálicos de Robbie. Girou nos calcanhares a tempo de ver seu companheiro triunfante emergir do esconderijo e correr a toda velocidade para a árvore que servia de pique.
Glória gritou, consternada: – Espere, Robbie! Assim não vale, Robbie! Você prometeu não correr até eu encontrá-lo!
Seus pezinhos - não conseguiam ganhar terreno sobre os passos gigantescos de Robbie. Então, a três metros da árvore, o andar de Robbie transformou-se em mero arrastar de pés, e Glória, num último e desesperado impulso de velocidade, passou ofegante por ele e tocou a casca do tronco que servia de pique.
Radiante, a menina voltou-se para o fiel Robbie e, com a maior das ingratidões, recompensou-o pelo sacrifício: zombou cruelmente de sua incapacidade para correr. – Robbie não sabe correr! – gritou, com toda a força de seus pulmões de oito anos. – Posso ganhar sempre dele! Posso ganhar sempre dele!
Cantava as frases ritmicamente, em tom agudo. Naturalmente, Robbie não respondeu – pelo menos, não com palavras. Em lugar disso, fingiu que estava correndo, afastando-se lentamente, até que Glória começou a correr atrás dele, enquanto o robô esquivava-se no último instante, obrigando-a a descrever círculos, inutilmente, com os bracinhos esticados abanando no ar.
– Robbie! – gritava ela. – Fique quieto! E seu riso saía em impulsos ofegantes.
Afinal, ele girou nos calcanhares e agarrou a menina, fazendo-a rodar. Glória viu o mundo de cabeça para baixo, sobre um fundo azulado, com as árvores verdes parecendo querer alcançar o abismo. Em seguida, sentou-se novamente na grama, apoiada à perna metálica de Robbie e ainda segurando um duro dedo de metal.
Depois de algum tempo, recobrou o fôlego. Mexeu inutilmente no cabelo desgrenhado, imitando vagamente um gesto de sua mãe, e contorceu-se, a fim de verificar se o vestido estava rasgado.
Deu uma palmada nas costas de Robbie. – Menino mau! Vai apanhar!
Robbie encolheu-se, escondendo o rosto com as mãos, de modo que ela se viu forçada a acrescentar: – Não, Robbie. Não vou bater em você. Mas, de qualquer maneira, agora é a vez de eu me esconder, porque você tem pernas mais compridas e prometeu não correr para o pique até eu encontrá-la.
Robbie assentiu com a cabeça – um pequeno paralelepípedo de arestas e cantos arredondados, ligado por uma haste curta e flexível a outro paralelepípedo semelhante, mas muito maior, que lhe servia de torso – e virou-se obedientemente para a árvore.
Uma fina película metálica recobriu-lhe os olhos e do interior de seu corpo veio um tique-taque ritmado e sonoro.
– Agora, não espie... e não pule os números – avisou Glória, antes de correr para esconder-se.
Os segundos foram contados com regularidade invariável e, ao centésimo tique, a película metálica se ergueu.
Os brilhantes olhos vermelhos de Robbie examinaram as redondezas. Pousaram um momento sobre uma mancha colorida atrás de uma pedra. Robbie avançou alguns passos, convencendo-se de que Glória estava agachada atrás da pedra.
Vagarosamente, mantendo-se sempre entre Glória e a árvore do pique, ele se encaminhou para o esconderijo. Quando Glória estava bem à vista e nem mesmo poderia imaginar que ainda não fôra descoberta, Robbie esticou um braço em direção a ela e bateu com o outro de encontro à perna, produzindo um ruído metálico. Glória se ergueu, amuada. – Você espiou! – declarou, com tremenda injustiça. – Além disso, já estou cansada. de brincar de esconder. Quero andar a cavalo.
Porém Robbie, magoado com a injusta acusação, sentou-se cuidadosamente e meneou a cabeça de um lado para outro.
Imediatamente, Glória mudou de tom, tentando convencê-lo gentilmente: – Vamos, Robbie. Eu estava brincando quando disse que você espiou. Deixe-me dar uma voltinha em você.
Todavia, Robbie não estava disposto a se deixar levar com tanta facilidade. Olhou teimosamente para o alto e sacudiu a cabeça com ênfase ainda maior.
– Por favor, Robbie. Por favor, deixe-me dar uma voltinha em você – insistiu Glória, passando os bracinhos rosados pelo pescoço dele e apertando com força.
Então, mudando repentinamente de humor, afastou-se. – Se você não deixar, vou chorar – declarou, contorcendo terrivelmente o rosto num movimento preparatório.
O malvado Robbie não deu maior atenção à horrível possibilidade e sacudiu a cabeça pela terceira vez.
Glória julgou necessário usar seu maior trunfo. – Está bem – declarou em tom suave. – Se você não deixar, não lhe contarei mais histórias. Mais nenhuma...
Robbie cedeu imediata e incondicionalmente ante tal ultimato, balançando afirmativamente a cabeça até que o metal de seu pescoço chegou a zunir. Com grande cuidado, ergueu a menina e colocou-a sobre seus ombros largos e lisos.
As supostas lágrimas de Glória desapareceram como por encanto e ela soltou gritinhos de prazer. A pele metálica de Robbie, mantida à temperatura constante de vinte e um graus pelas bobinas de alta resistência existentes em seu interior, produzia na menina uma sensação confortável, ao mesmo tempo em que o som alto que seus saltos faziam de encontro ao peito do robô lhe parecia encantador.
– Você é um planador, Robbie; um planador grande e prateado. Abra os braços, Robbie... Tem de abrir, para ser um planador. Era uma lógica irrefutável. Os braços de Robbie passaram a ser asas pegando as correntes aéreas e ele se transformou num planador prateado.
Glória torceu a cabeça do robô para a direita. Ele se inclinou, fazendo uma curva. Glória equipou o planador com um motor que fazia "Brrrr" e depois com armas que faziam "Bum!" e "Shshshhhsh". Os piratas estavam perseguindo e os atiradores do planador entraram em ação.
Os piratas foram varridos do céu.
– Peguei outro! ... Mais dois! – exclamava a menina.
Então, ela ordenou pomposamente: – Mais depressa, homens! A munição está acabando!
Glória apontava por cima do ombro com coragem indomável e Robbie passou a ser uma nave espacial, atravessando o vácuo em aceleração máxima.
Ele correu através do campo até um trecho de grama alta situado no lado oposto, onde parou tão subitamente que a passageira não conteve um grito. Então, Robbie deixou-a cair suavemente no espesso tapete verde formado pela grama.
Glória ofegava, sem fôlego, murmurando repetidamente: – Foi ótimo!
Robbie esperou que ela recuperasse o fôlego e puxou levemente um de seus cachos.
– Quer alguma coisa? – indagou Glória, abrindo muito os olhos numa expressão de perplexidade que não conseguiu iludir a enorme "ama-seca". Robbie puxou-lhe o cabelo com um pouco mais de força.
– Oh, já sei. Quer uma história.
Robbie assentiu rapidamente.
– Qual delas?
Robbie ergueu um dedo, descrevendo um semicírculo.
A menina protestou. – Outra vez? Já lhe contei a "Gata Borralheira" um milhão de vezes! Não está cansado dela?... É uma história para bebês.
Outro semicírculo.
– Oh, está bem.
Glória concentrou-se, passando mentalmente em revista os detalhes da história (bem como as variações criadas por ela própria, que eram numerosas), e começou: – Está pronto? Bem...
Era uma vez uma menina muito linda chamada Ella. Tinha uma madrasta terrivelmente malvada e duas irmãs de criação muito feias e cruéis. Então...
Glória estava chegando ao clímax da história : chegava a meia-noite e tudo estava voltando ao sórdido original.
Robbie escutava atentamente, com os olhos brilhando... quando houve uma interrupção. – Glória!
Era o brado agudo de uma mulher que estivera chamando não uma, mas várias vezes; tinha o tom nervoso de alguém cuja impaciência já se transformava em preocupação.
– Mamãe está chamando – disse Glória, não muito satisfeita. – É melhor você me carregar de volta para casa, Robbie.
Robbie obedeceu alegremente, pois havia algo nele que julgava melhor obedecer à Sra. Weston sem a menor hesitação. O pai de Glória raramente estava em casa durante o dia, exceto aos domingos – como agora, por exemplo –, e, quando isso acontecia, mostrava-se uma pessoa jovial e compreensiva. A mãe de Glória, porém, era uma fonte de inquietação para Robbie, que sempre sentia um impulso para esquivar-se das vistas dela.
A Sra. Weston avistou-os tão logo eles surgiram acima dos compridos tufos de grama e retirou-se para o interior da casa, a fim de esperá-los.
– Fiquei rouca de tanto chamar, Glória – disse, em tom severo. – Onde estava?
– Estava com Robbie – respondeu a menina, com voz trêmula. – Contava-lhe a história da "Gata Borralheira" e esqueci a hora do almoço.
– Bem, é uma pena que Robbie também tenha esquecido – comentou a Sra. Weston. Então, como se apercebendo da presença do robô, virou-se bruscamente para ele. – Pode ir, Robbie. Ela não precisa de você agora. – E acrescentou em tom brutal: – E não volte até que eu o chame.
Robbie girou nos calcanhares para retirar-se, mas hesitou quando a voz de Glória se ergueu em sua defesa: – Espere, mamãe. Você tem de deixar Robbie ficar. Não terminei a história da "Gata Borralheira" para ele. Prometi contar toda e não acabei.
– Glória!
– Mamãe, prometo que ele ficará tão quieto que a senhora nem perceberá que ele está aqui. Ele pode sentar naquela cadeira, ali no canto, sem dizer uma palavra. Isto é, sem fazer nada. Não é, Robbie?
Robbie, em resposta, assentiu com a cabeça, balançando-a uma vez.
– Glória, se você não parar imediatamente com isso, ficará uma semana inteira sem ver Robbie!
A menina baixou a cabeça. – Está bem! Mas a "Gata Borralheira" é a história preferida de Robbie e eu não terminei de contar... E ele gosta tanto...
O robô saiu com um andar desconsolado e Glória engoliu um soluço.
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George Weston sentia-se completamente feliz e satisfeito. Tinha o hábito de ficar à vontade nas tardes de domingo. Um lauto e gostoso almoço na barriga; um sofá velho, macio e confortável onde deitar; um exemplar do Times; chinelos nos pés e peito nu – como alguém podia deixar de ficar à vontade?
Portanto, não ficou contente quando sua mulher entrou. Após dez anos de vida de casado, ainda era inominavelmente tolo de continuar a amá-la e não havia dúvida de que sempre gostava de vê-la – mas, apesar de tudo, as tardes de domingo, logo depois do almoço, eram sagradas para ele e sua idéia de um sólido conforto era ser deixado em completa solidão durante duas ou três horas.
Em conseqüência, fixou firmemente os olhos no mais recente relatório sobre a Expedição Lefebre-Yoshida a Marte (que deveria decolar da Base Lunar e tinha possibilidades de realmente alcançar êxito) e ignorou a presença da esposa.
A Sra. Weston esperou pacientemente durante dois minutos e impacientemente por mais dois. Afinal, quebrou o silêncio.
– George!
– Hum?
– George, eu disse! Quer largar esse jornal e olhar para mim?
O jornal caiu ao chão e Weston virou o rosto cansado para fitar a mulher.
– O que é, querida?
– Você sabe o que é, George. Trata-se de Glória e daquela máquina terrível.
– Que máquina terrível?
– Ora, não finja que não sabe de que estou falando. É aquele robô que Glória chama de Robbie. Ele não a deixa por um só instante.
– Bem, por que haveria de deixar? Não deve deixá-la. E certamente, não é uma máquina terrível. É o melhor robô que se pode comprar e pode ter absoluta certeza de que me custou meio ano de ordenado. Valeu a pena, porém; ele é muito mais inteligente do que a metade de meus empregados do escritório.
Fez menção de pegar novamente o jornal, mas sua esposa foi mais rápida, apanhando-o primeiro. – Escute, George. Não admito que minha filha seja entregue a uma máquina... e não me interessa o quanto ela seja inteligente. Não tem alma. Ninguém sabe o que pode estar pensando. Uma criança não foi feita para ser guardada por um objeto de metal.
Weston franziu a testa. – Desde quando você decidiu isso? Há dois anos que ele está com Glória e só agora você se preocupa.
– No início, era diferente. Uma novidade; tirava-me uma carga dos ombros e... era uma coisa elegante. Mas agora, não sei... Os vizinhos...
– Ora, o que têm os vizinhos a ver com o assunto? Ouça: pode-se ter infinitamente mais confiança em um robô do que em uma ama-seca humana. Na realidade, Robbie foi construído exclusivamente com uma finalidade: fazer companhia a uma criança pequena. Toda a sua "mentalidade" foi criada com esse único objetivo. Ele não pode deixar de ser fiel, carinhoso e bom. É uma máquina – feita assim. O que é bem mais do que pode dizer a respeito dos seres humanos.
– Mas poderia acontecer algo errado. Algum... algum... – a Sra. Weston era um tanto ignorante a respeito dos órgãos internos de um robô – ... alguma pecinha poderá soltar-se e aquela coisa horrível ficar maluca e... e... Interrompeu-se, não conseguindo dizer em voz alta um pensamento tão óbvio.
– Tolice – negou Weston, com um involuntário estremecimento nervoso. – Isso é completamente ridículo. Na época em que compramos Robbie, tivemos uma longa conversa sobre a Primeira Lei da Robótica. Você sabe que é impossível para um robô fazer mal a um ser humano; que muito antes de acontecer o bastante para alterar a Primeira Lei, o robô se tornaria completamente inoperante. Trata-se de uma impossibilidade matemática. Além disso, eu chamo um engenheiro da U.S. Robôs duas vezes por ano e ele faz uma revisão completa no pobre aparelho. Ora, não há maior possibilidade de acontecer algo errado com Robbie do que eu ou você ficarmos birutas de uma hora para outra. Na verdade, as probabilidades são consideravelmente menores. Além disso, como é que você vai tirá-la de Glória?
Fez um novo gesto inútil para apoderar-se do jornal, mas a mulher atirou raivosamente o Times para a outra sala.
– É justamente isso, George! Ela não brinca com mais ninguém. Há dúzias de meninos e meninas com quem poderia fazer amizade, mas ela se recusa. Nem mesmo chega perto deles, a menos que eu a obrigue. Uma menina não deve crescer assim. Você quer que ela seja normal, não quer? Quer que ela seja capaz de representar seu papel na sociedade.
– Você está com medo de fantasmas, Grace. Finja que Robbie é um cachorro. Já vi centenas de crianças que gostam mais do cachorro do que do próprio pai.
– Um cachorro é diferente, George. Precisamos livrar-nos daquela coisa horrível! Você pode vendê-la de volta à companhia. Já indaguei a respeito e sei que pode.
– Indagou? Ora, escute aqui, Grace, não vamos bancar idiotas. Ficaremos com o robô até Glória crescer um pouco mais e não quero que se volte a tocar no assunto. E saiu da sala, amuado.
Duas noites mais tarde, a Sra. Weston foi receber o marido à porta. – Você precisa escutar-me, George. Há inquietação na vizinhança.
– A respeito de quê? – perguntou Weston, entrando no banheiro e impedindo toda e qualquer resposta com o barulho da água.
A Sra. Weston esperou. Afinal, disse : – A respeito de Robbie.
Weston saiu do banheiro com uma toalha, o rosto vermelho e zangado. – De que está falando?
– Oh, a coisa vem crescendo cada vez mais. Procurei fechar os olhos e fingir que não via, mas recuso-me a continuar assim. A maioria dos moradores da aldeia considera Robbie perigoso. Não permitem que as crianças cheguem perto de nossa casa à noite.
– Nós confiamos nossa filha a ele.
– Bem, as pessoas não são razoáveis a respeito de coisas como essa.
– Que vão para o diabo!
– Dizer isso não resolve o problema. Sou obrigada a fazer minhas compras na aldeia. Sou obrigada a encontrá-los todos os dias. Atualmente, o assunto de robôs é pior ainda nas cidades grandes. Nova York acaba de baixar uma portaria proibindo todos os robôs de aparecer nas ruas entre o anoitecer e o amanhecer.
– Muito bem. Mas não podem impedir que mantenhamos um robô em nossa casa... Grace, isto é mais uma de suas campanhas. Estou reconhecendo os indícios. Mas não adianta. A resposta ainda é: não! Vamos ficar com Robbie!
Apesar disso, ele ainda amava a esposa – e, o que era pior, ela sabia disso. Afinal, George Weston era apenas um homem – coitado – e utilizou ao máximo todos os artifícios a seu alcance para tentar dobrá-la, mas inutilmente.
Dez vezes na semana seguinte, Weston gritou: – Robbie fica – e não adianta insistir!
Mas, de cada vez, o grito era mais fraco e acompanhado por um gemido mais alto e mais agoniado.
Afinal, chegou o dia em que Weston, com um sentimento de culpa, aproximou-se da filha e sugeriu um belo espetáculo de visovox na aldeia.
Glória bateu palmas, radiante. – Robbie pode ir conosco?
– Não, querida – respondeu o pai, franzindo mentalmente a testa ao som de sua própria voz. – Não permitem que robôs visitem o visovox... Mas pode contar tudo a Robbie, quando voltarmos para casa. Gaguejou a dizer a última frase e virou o rosto para o lado.
Glória voltou da aldeia transbordando de entusiasmo, pois o visovox fôra realmente um espetáculo maravilhoso.
Esperou que seu pai guardasse o carro-jato na garagem subterrânea.
– Veja só quando eu contar tudo a Robbie, papai. Ele adoraria o espetáculo... Especialmente quando Francis Fran estava recuando com tanto cuidado, esbarrou num dos Homens-Leopardo e teve de fugir... Riu novamente.
– Papai, existem mesmo Homens-Leopardo na Lua?
– Provavelmente não – replicou Weston, distraído. – É apenas uma invenção divertida.
Sabia que não poderia demorar muito tempo com o carro. Seria obrigado e enfrentar a realidade.
Glória atravessou o gramado correndo. – Robbie!... Robbie! Então, estacou ao ver um lindo collie que a fitava com sérios olhos castanhos e abanava a cauda, parado na varanda.
– Oh, que cachorro bonito! – exclamou Glória, subindo os degraus, aproximando-se cautelosamente e afagando o cão. – É para mim, papai?
A Sra. Weston juntou-se a eles. – É, sim, Glória. É bonito... macio e peludo. É muito manso. E gosta de meninas.
– Ele sabe brincar?
– Claro. Sabe fazer uma porção de truques. Gostaria de ver algum?
– Agora mesmo. Quero que Robbie veja, também...Robbie! Parou, hesitante, e franziu a testa. – Aposto que ele se trancou no quarto porque ficou zangado por não ter ido comigo ao visovox. Você precisa explicar a ele, papai. Talvez Robbie não acredite em mim, mas acreditará no que o senhor disser.
Weston apertou os lábios. Olhou para a esposa, mas esta tinha os olhos voltados em outra direção.
Glória virou-se precipitadamente e desceu correndo os degraus do porão, gritando: – Robbie!... Venha ver o que papai e mamãe trouxeram para mim! É um cachorro!
Regressou um minuto depois, amedrontada. – Mamãe, Robbie não está no quarto. Onde está ele?
Não houve resposta e George Weston tossiu, mostrando-se subitamente muito interessado em uma nuvem que passava no céu. A voz de Glória tremia, à beira das lágrimas: – Onde está Robbie, mamãe?
A Sra. Weston sentou-se e puxou suavemente a filha para si. – Não fique triste, Glória. Creio que Robbie se foi.
– Foi embora? Para onde? Para onde ele foi, mamãe?
– Ninguém sabe, querida. Ele apenas foi embora. Procuramos, procuramos por ele e não conseguimos encontrá-lo.
– Quer dizer que ele nunca mais voltará? Os olhos da menina estavam arregalados de horror.
– Talvez o encontremos logo. Vamos continuar a procurá-lo. Enquanto isso, você pode brincar com o seu lindo cachorro novo. Olhe para ele! Chama-se "Relâmpago" e sabe...
Mas as lágrimas transbordavam dos olhos de Glória. – Não quero esse cachorro horrível... Quero Robbie. Quero que vocês encontrem Robbie para mim. Sua tristeza tornou-se maior do que as palavras e ela prorrompeu num choro alto e sentido.
A Sra. Weston olhou para o marido, procurando ajuda, mas ele se limitava a mexer distraidamente os pés no mesmo lugar, sem tirar o olhar ardente da nuvem que passava no céu.
A mulher curvou-se, na tarefa de consolar a filha. – Por que está chorando, Glória? Robbie era apenas uma máquina – uma máquina velha e feia. Ele nem era vivo.
– Ele não era nenhuma máquina! – gritou Glória ferozmente, esquecendo-se da gramática. – Ele era uma "pessoa", como eu e você – e era meu "amigo". Quero Robbie de volta. Oh, mamãe, quero Robbie de volta!
A mãe gemeu, considerando-se derrotada, e deixou Glória entregue à própria dor.
– Deixe-a chorar à vontade – disse ao marido. – As tristezas infantis nunca duram muito. Dentro de alguns dias, ela esquecerá que aquele horrível robô chegou a existir.
Mas o tempo provou que as previsões da Sra. Weston eram por demais otimistas. É bem verdade que Glória parou de chorar, mas também deixou de sorrir. A cada dia que passava, tornava-se mais calada e sombria. Gradativamente, aquela atitude de passiva infelicidade foi vencendo a resistência da Sra. Weston e a única coisa que a impedia de voltar atrás era a impossibilidade de admitir a derrota perante o marido.
Certa noite, a Sra. Weston irrompeu na sala de estar, sentou-se e cruzou os braços, parecendo ferver de raiva.
O marido esticou o pescoço, a fim de olhá-la por cima do jornal. – O que é agora, Grace?
– É a menina, George. Fui obrigada a devolver o cachorro, hoje. Glória declarou que positivamente não suportava vê-lo. Ela está me levando a um colapso nervoso.
Weston largou o jornal, com um brilho esperançoso no olhar. – Talvez... talvez devamos trazer Robbie de volta. É possível, como você sabe. Entrarei em contato com...
– Não! – interrompeu a mulher, furiosa. – Não admito. Não vamos ceder tão facilmente. Minha filha não será criada por um robô, mesmo que leve anos para esquecê-la.
Com ar desapontado, Weston tornou a pegar o jornal. – Mais um ano assim e ficarei de cabelos brancos antes do tempo.
– Você ajuda muito, George – foi a gélida resposta. – O que Glória necessita é de uma mudança de ambiente. É claro que aqui ela não poderá esquecer Robbie. Como seria possível, quando cada pedra ou árvore faz com que ela se lembre dele? E realmente a situação mais idiota de que já ouvi falar. Imagine: uma menina definhando por causa da perda de um robô.
– Bem, não se desvie do assunto. Qual a mudança de ambiente que você anda planejando?
– Vamos levá-la para Nova York.
– Para a cidade?! Em agosto?! Escute: sabe como é Nova York em agosto? É insuportável!
– Milhões de pessoas a suportam.
– Não têm um lugar como este onde possam morar. Se não fossem obrigados a permanecer em Nova York, não ficariam lá.
– Bem, nós temos de ficar lá. E digo-lhe que partiremos agora – ou tão logo possamos tomar as providências necessárias. Na cidade, Glória encontrará bastante interesse e amigos para reanimar-se e esquecer aquela máquina.
– Oh, Deus! – gemeu a parte mais fraca do casal. – Aquele calçamento fumegante!
– Somos obrigados – foi a resposta inabalável. – Glória perdeu dois quilos e meio no último mês e, para mim, a saúde de minha filhinha é mais importante do que o seu conforto.
– É uma pena que você não tenha pensado na saúde de sua filhinha antes de privá-la de seu robô de estimação.
Glória demonstrou imediatos sinais de melhora ao ser informada da futura mudança para a cidade. Falava pouco no assunto, mas quando o fazia era sempre com viva expectativa. Voltou a sorrir e a comer com um apetite que se aproximava do antigo.
A Sra. Weston felicitava-se, deliciada, e não perdia oportunidade para gozar o triunfo perante o marido, que continuava a se mostrar cético.
– Veja, George: ela está ajudando a arrumar a bagagem e tagarela como se não tivesse a menor preocupação neste mundo. É exatamente o que eu lhe disse: tudo o que precisamos é algo que sirva de substituto para os outros interesses.
– Hum... – foi a resposta pessimista. – Espero que sim.
Os preparativos preliminares foram terminados rapidamente. Tornaram-se providências para preparar a casa na cidade e contrataram um casal para tomar conta da casa no campo. Quando, afinal, chegou o dia da viagem, Glória voltara ao que era antes e não fez a menor menção a respeito de Robbie.
Em ótimo humor, a família tomou um táxi-giro até o aeroporto. (Weston preferiria usar seu próprio giro, mas este tinha apenas dois lugares e não havia espaço para a bagagem) e embarcou no grande avião.
– Venha, Glória – disse a Sra. Weston. – Reservei- lhe um lugar perto da janela, de modo que você possa apreciar o panorama.
Glória correu alegremente pelo corredor central e foi achatar o nariz num oval branco de encontro ao vidro grosso e transparente da janela, observando tudo com uma intensidade que aumentou quando o barulho do motor chegou ao interior do aparelho. Era jovem demais para ter medo quando o solo pareceu cair, como se largado por um alçapão e, de repente, ela sentiu-se como se tivesse duas vezes o seu próprio peso; mas tinha idade suficiente para ficar vivamente interessada no que se passava.
Somente quando o solo pareceu transformar-se em uma longínqua colcha de pequenos retalhos, Glória descolou o nariz da janela e virou-se para a mãe.
– Chegaremos logo à cidade, mamãe? – perguntou ela, esfregando o nariz frio com a palma da mão e observando com interesse enquanto a mancha de condensação formada por seu hálito na vidraça diminuía lentamente de tamanho, até desaparecer totalmente.
– Em cerca de meia hora, querida. Então, com um leve traço de ansiedade, acrescentou: – Você está contente por ir, não está? Não acha que será feliz na cidade, com todos aqueles prédios, gente e coisas para ver? Iremos todos os dias ao visovox ver os espetáculos, e também ao circo, à praia e...
– Sim, mamãe – foi a resposta pouco entusiástica de Glória.
Naquele instante, o avião passou por sobre um banco de nuvens e Glória sentiu-se imediatamente absorvida pelo incomum espetáculo de ver as nuvens embaixo de si.
Em seguida, viram-se novamente em céu aberto, muito azul, e a menina voltou-se novamente para a mãe, com um súbito e misterioso ar de que conhece um segredo.
– Sei por que estamos indo para a cidade, mamãe.
– Sabe? – indagou a Sra. Weston, intrigada. – Por quê?
– Vocês não me disseram porque queriam fazer uma surpresa, mas eu sei.
Por um instante, perdeu-se na admiração de sua própria perspicácia. Então, riu alegremente. – Vamos a Nova York para acharmos Robbie, não é?... com detetives. As palavras da menina apanharam George Weston em meio a um gole de água, com resultados desastrosos. Houve uma espécie de engasgo estrangulado, seguido por um gêiser de água e logo depois por uma série de tossidos asfixiados. Quando tudo terminou, ele se manteve de pé, encharcado, com o rosto vermelho, muito aborrecido.
A Sra. Weston manteve a compostura, mas quando Glória repetiu a pergunta em tom mais ansioso, ela verificou que seu humor fôra um tanto abalado.
– Talvez – replicou bruscamente. – Agora, sente-se e fique aquieta, pelo amor de Deus!
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Nova York, no ano de 1998, era, mais do que nunca em sua história, um verdadeiro paraíso para os turistas. Os pais de Glória logo se deram conta do fato e procuraram aproveitá-lo ao máximo.
Em virtude de ordens expressas da esposa, George Weston tomou providência para que seus negócios corressem bem sem sua presença durante mais ou menos um mês, a fim de ter tempo livre para o que ele definiu como "mimar Glória até as raias da ruína". Como tudo o que Weston fazia, a tarefa foi cumprida de modo eficiente, completo e prático. Antes que se passasse um mês, nada que pudesse ser feito deixou de sê-lo.
Glória foi levada até o topo do Roosevelt Building, com oitocentos metros de altura, para admirar com espanto o estranho panorama de telhados, que se misturavam a distância com os campos de Long Island e as planícies de Nova Jersey. Visitaram os zôos, onde Glória observou com uma deliciosa sensação de medo o "leão vivo de verdade" (embora um tanto desapontada por verificar que os zeladores alimentavam a fera com bifes crus, em lugar de seres humanos, como ela esperava) e pediu peremptória e insistentemente para ver a baleia.
Os vários museus receberam sua dose de atenção, bem como os parques, as praias e o aquário.
Foi levada rio Hudson acima em um vapor de turismo aparelhado à moda arcaica da "Louca Década de Vinte". Fez uma viagem de exibição à estratosfera, onde o céu assumia uma profunda cor púrpura, as estrelas pareciam maiores e brilhavam mais, e a terra enevoada lá embaixo parecia uma enorme tigela côncava. Foi levada num submarino com paredes de vidro às profundezas do Long Island Sound, onde, em meio a um mundo esverdeado e ondulante, belas e curiosas criaturas marinhas vinham fitá-la com olhar fixo e mortiço antes de fugirem repentinamente com movimentos sinuosos.
Em nível mais prosaico, a Sra. Weston levou a filha às grandes lojas de departamentos, onde a menina pôde maravilhar-se em outro tipo de terra encantada.
Na realidade, depois de decorrido quase um mês, os Westons estavam convencidos de haver feito tudo o que era concebível para afastar de uma vez por todas da mente de Glória a lembrança do robô desaparecido – mas não tinham certeza de haver conseguido.
O fato era que, onde quer que Glória fosse, demonstrava o mais absorto e concentrado interesse por quaisquer robôs que estivessem presentes. Por mais excitante ou novo para seus olhos infantis que pudessem ser os espetáculos diante dela, Glória, voltava-se imediatamente para o lado ao perceber de relance um movimento metálico.
A Sra. Weston fazia o possível para manter Glória afastada de todos os robôs.
E o caso chegou ao clímax, afinal, por ocasião do episódio no Museu da Ciência e da Indústria. O museu anunciara um "programa infantil" especial, durante o qual seriam exibidas amostras da magia científica, em escala especial para a mentalidade infantil. Obviamente, os Westons colocaram o programa em sua lista de "prioridade".
Enquanto os Westons estavam sentados, totalmente absortos na contemplação dos feitos de um poderoso eletroímã, a Sra. Weston subitamente percebeu que Glória não mais estava a seu lado. O pânico inicial cedeu lugar a uma calma decisão. A Sra. Weston conseguiu a ajuda de três serventes do museu e deu início a uma busca minuciosa.
Todavia, é claro que Glória não era do tipo que erra sem destino.
Levando-se em consideração sua idade, era uma menina desusadamente decidida e objetiva, digna herdeira da mãe no que se relaciona com essas características. Ao passar pelo terceiro andar, vira um grande cartaz anunciando: "Para Ver o Robô Falante, Siga por Aqui". Tendo soletrado silenciosamente os dizeres e verificando que seus pais não pareciam querer seguir a direção certa, tornou a providência óbvia: depois de esperar pela oportuna distração momentânea dos pais, afastou-se calmamente e seguiu a direção indicada pelo letreiro. O robô falante era um tour de force, um aparelho totalmente desprovido de utilidade prática, possuindo apenas valor publicitário. Uma vez por hora, um grupo escoltado por um guia postava-se diante dele e sussurrava cuidadosamente uma série de perguntas ao engenheiro especializado que estava encarregado do robô. As perguntas que o engenheiro julgava adequadas aos circuitos do robô eram transmitidas por ele ao robô falante. Era um tanto desinteressante. Pode ser bom saber que o quadrado de quatorze é cento e noventa e seis, que a temperatura ambiente no momento é de setenta graus Fahrenheit e a pressão atmosférica é de 30,02 polegadas de mercúrio, que o peso atômico do sódio é 23 – mas não é realmente preciso um robô para isso. Especialmente quando se trata de massa pesada e totalmente imóvel de fios e bobinas, ocupando um espaço superior a vinte metros quadrados. Poucas pessoas davam-se ao trabalho de voltar para vê-lo, mas uma adolescente estava sentada tranqüilamente em um banco, esperando pela terceira vez. Era a única pessoa no salão quando Glória ali entrou. Glória não olhou para a jovem. Naquele momento, outro ser humano não passava de uma coisa indigna de ser levada em consideração. Reservava toda a sua atenção para aquele grande aparelho sobre rodas. Hesitou por um instante, assustada. Não parecia com qualquer robô que ela tivesse visto antes. Cautelosa, ainda em dúvida, ergueu a voz fininha: – Por favor, Sr. Robô, o senhor é o robô falante?
Embora não tivesse a certeza, parecia-lhe que um robô que falava era digno de um alto grau de deferência. (A jovem sentada no banco permitiu que uma expressão de intensa concentração surgisse em seu rosto magro, de feições comuns. Tirou da bolsa um caderninho de anotações e começou a escrever com rápidos sinais de taquigrafia).
Houve um zumbido de engrenagens bem lubrificadas e uma voz de timbre mecânico respondeu gravemente, com palavras desprovidas de sotaque ou entonação: – Eu... sou... o... robô... que... fala.
Glória fitou-o tristemente. Ele falava, mas o som vinha do interior. Não havia um rosto com o qual falar.
– O senhor pode me ajudar, Sr. Robô? – indagou ela.
O robô falante era feito para responder perguntas e só lhe haviam sido feitas perguntas às quais ele podia responder. Conseqüentemente, tinha grande confiança em sua própria capacidade.
– Eu... posso... ajudar... você.
– Muito obrigada, Sr. Robô. O senhor viu Robbie?
– Quem... é... Robbie?
– Ele é um robô, Sr. Robô – disse Glória, pondo-se na ponta dos pés. – Ele é quase tão alto quanto o senhor, só que mais alto, Sr. Robô, e é muito bonzinho. Ele tem cabeça, sabe. Quero dizer... o senhor não tem, mas ele tem, Sr. Robô.
O robô falante ficou para trás.
– Um... robô?
– Sim senhor, um robô como o senhor, só que ele não sabe falar, é claro... e parece uma pessoa de verdade.
– Um... robô... como... eu?
– Sim, Sr. Robô.
A única resposta do robô falante foi um ruído de estática, ocasionalmente acompanhado por algum som incoerente. A generalização radical que lhe fôra apresentada, isto é, sua existência, não como um objeto único e especial, mas como membro de um grupo geral, fôra demais para ele. Portando-se lealmente, procurara abranger o novo conceito e queimara meia dúzia de bobinas. Pequenos sinais de alarma começaram a zumbir.
(A adolescente retirou-se nesse momento. Já colhera as informações suficientes para seu trabalho de Física – 1 sobre "Aspectos Práticos da Robótica". Foi o primeiro dentre os muitos trabalhos elaborados por Susan Calvin sobre o assunto.) Glória permaneceu à espera da resposta da máquina, ocultando cuidadosamente sua impaciência. De repente, ouviu um grito atrás de si: – Lá está ela!
Reconheceu a voz da mãe. – O que está fazendo aqui, menina feia? – exclamou a Sra. Weston, cuja ansiedade dissolveu-se imediatamente em impaciência. – Sabe que quase matou seu pai e sua mãe de susto? Por que fugiu?
O engenheiro entrara correndo, arrancando os cabelos de raiva, querendo saber quem, dentre o grupo que começava a juntar-se no salão, mexera na máquina.
– Não sabem ler os avisos?! – berrava. – Não podem entrar aqui sem um guia!
Glória ergueu a voz consternada, dominando o barulho: – Só vim ver o robô falante, mamãe. Pensei que ele talvez soubesse onde está Robbie, pois ambos são robôs.
Então, ao lembrar-se outra vez de Robbie, prorrompeu numa cachoeira de lágrimas. – Preciso encontrar Robbie, mamãe. Preciso.
A Sra. Weston soltou um gemido abafado. – Oh, meu Deus! Vamos para casa, George. Isto é mais do que eu posso suportar.
Naquela mesma tarde, George Weston ausentou-se durante várias horas. Na manhã seguinte, aproximou-se da esposa com uma expressão suspeita, que parecia ocultar uma confiante complacência.
– Tive uma idéia, Grace.
– Sobre o quê? – foi a resposta desinteressada.
– Sobre Glória.
– Você não vai sugerir que compremos de volta aquele robô!
– Não. É claro que não.
– Então diga logo. Acho melhor eu lhe dar ouvidos. Nada do que eu fiz parece ter dado certo.
– Muito bem. Eis o que tenho pensado: todo o problema com Glória é que ela pensa em Robbie como uma pessoa, e não como uma máquina. É natural que não consiga esquecê-lo. Ora, se conseguirmos convencê-la de que Robbie nada mais é do que um monte de aço e cobre sob forma de chapas e fios, com a eletricidade lhe servindo de fluido vital, por quanto tempo perdurarão suas saudades? Trata-se de um ataque psicológico, se você consegue entender meu ponto de vista.
– Como pretende conseguir isso?
– É muito simples. Onde pensa que fui ontem? Convenci Robertson, da U.S. Robôs e Homens Mecânicos S.A., a programar uma visita completa às instalações da companhia, amanhã. Nós três iremos juntos e quando terminarmos a visita, Glória estará persuadida de que um robô não é um ser vivo.
Os olhos da Sra. Weston abriram-se lentamente e neles surgiu um brilho muito semelhante a uma súbita admiração.
– Ora, George, é uma ótima idéia.
George Weston estufou o peito, forçando os botões do colete. – É o único tipo de idéias que eu tenho.
O Sr. Struthers era um gerente-geral consciencioso e, naturalmente, inclinado a ser um tanto tagarela. O plano combinado por George Weston resultou, portanto, em uma visita completa, detalhadamente explicada – talvez até demais – a todos os pontos das instalações. Todavia, a Sra. Weston não ficou entediada. Na verdade, fez com que o cicerone parasse várias vezes e pediu-lhe que repetisse suas explicações em linguagem mais simples, a fim de que Glória pudesse entendê-las.
Sob a influência de tal apreciação de sua capacidade narrativa, o Sr. Struthers expandiu-se jovialmente e tornou-se ainda mais comunicativo, se é que possível.
George Weston, por sua vez, demonstrava crescente impaciência. – Perdão, Struthers – disse ele, interrompendo uma lição a respeito de células fotoelétricas – vocês não têm uma seção da fábrica onde só é utilizada a mão-de-obra dos robôs?
– Hum? Oh, sim! Sim, naturalmente! – respondeu o gerente, sorrindo para a Sra. Weston. – Não deixa de ser uma espécie de círculo vicioso: robôs criando mais robôs. Naturalmente, não empregamos o método como uma prática generalizada. Em primeiro lugar, os sindicatos jamais permitiriam que o fizéssemos. Mas podemos fabricar uns poucos robôs utilizando exclusivamente a mão-de-obra dos robôs, simplesmente como uma espécie de experiência científica. Como podem ver – e bateu com o pince-nez na palma da mão, para reforçar o argumento – o que os sindicatos não compreendem, e digo isso como alguém que sempre teve muita simpatia para com o movimento trabalhista em geral, é que o advento do robô, embora implicando, de início, em uma certa deslocação do trabalho, será inevitavelmente...
– Sim, Struthers – tornou a interromper George Weston – mas, falando da seção da fábrica a que você se refere... podemos visitá-la? Tenho a certeza de que seria muito interessante.
– Oh, sim! Sim, naturalmente! – afirmou o Sr. Struthers, recolocando o pince-nez com um movimento convulsivo e puxando um pigarro embaraçado. – Sigam-me, por favor.
Manteve-se relativamente calado, enquanto guiava os três visitantes por um comprido corredor e desceu um lance de escadas. Então, ao entrarem num enorme salão bem iluminado, que zumbia com a atividade metálica, suas comportas tornaram a abrir-se e o jorro de explicações voltou a brotar.
– Eis aí! – exclamou, orgulhoso. – Somente robôs! Cinco homens trabalham como supervisores e nem mesmo permanecem neste recinto. No período de cinco anos – isto é, desde que iniciamos este projeto – não houve um único acidente. Naturalmente, os robôs montados aqui são relativamente simples, mas...
Há muito tempo a voz do gerente-geral tornara-se apenas um murmúrio um tanto tranqüilizante aos ouvidos de Glória. Na sua opinião toda aquela visita parecia bastante desinteressante e sem motivação, embora houvesse muitos robôs nas dependências da fábrica. Entretanto, nenhum deles se parecia com Robbie e ela os encarava com indisfarçado desprezo.
Naquele recinto, porém, ela notou que não havia gente. Então, seu olhar incidiu sobre um grupo de seis ou sete robôs que trabalhavam afanosamente em torno de uma mesa redonda situada quase no centro do salão. Seus olhos se esbugalharam, incrédulos de surpresa. O salão era enorme. Ela não podia ver bem, mas um dos robôs se parecia com... parecia com... era ele!
– Robbie!
O grito de Glória rasgou o ar e um dos robôs junto à mesa vacilou, largando a ferramenta que segurava. Glória quase enlouqueceu de alegria. Esgueirando-se por baixo do corrimão de proteção, antes que seus pais pudessem contê-la, ela pulou agilmente para o chão, um pouco abaixo.
Correu em direção a Robbie, agitando os braços, com o cabelo esvoaçando.
Os três adultos, horrorizados, ficaram petrificados onde estavam, vendo o que a menina excitada não conseguia ver: enorme trator aproximava-se pesadamente pelo caminho que lhe fôra traçado.
Passou-se uma fração de segundo antes que Weston recobrasse a presença de espírito, mas foram frações de segundo irrecuperáveis, pois agora seria impossível alcançar Glória.
Embora Weston pulasse o corrimão numa tentativa desesperada, tratava-se obviamente de um esforço inútil. O Sr. Struthers fez sinais frenéticos para que os supervisores detivessem o tratar; mas eles eram apenas humanos e levavam algum tempo para agir.
Apenas Robbie agiu imediatamente e com precisão. Com as pernas metálicas devorando o espaço que o separava de sua pequena dona, o robô partiu da direção aposta. Então, tudo aconteceu a um só tempo. Com um amplo movimento do braço, Robbie apanhou Glória sem diminuir em um átimo sua velocidade e, conseqüentemente, deixando-a completamente sem fôlego devido à pancada. Weston, sem compreender tudo o que se passava, sentiu, mais do que viu, Robbie passar por ele e estacou subitamente, confuso. O tratar cruzou a trajetória de Glória meio segundo depois que Robbie, tendo avançado mais três metros, parou com um ruído metálico de seus pés contra o chão.
Glória recobrou o fôlego, submetida a uma série de abraços fervorosos por parte dos pais, e voltou-se ansiosamente para Robbie. No que lhe dizia respeito, nada acontecera, exceto que ela encontrara o amigo.
Mas a expressão da Sra. Weston alterou-se de alivio para severa suspeita. Virou-se para o marido e, a despeito de sua aparência descabelada e um tanto descomposta, conseguiu parecer bastante controlada.
– Você engendrou tudo isto, não é?
George Weston enxugou a testa com um lenço. Sua mão tremia e seus lábios só conseguiam curvar-se num sorriso fraco e extremamente pálido.
A Sra. Weston prosseguiu o raciocínio.
– Robbie não foi projetado para trabalhar em construção ou engenharia. Não poderia prestar-se a esse tipo de serviço. Você providenciou deliberadamente para que ele fosse colocado aqui, a fim de que Glória o encontrasse. Foi você quem o fez!
– Bem, fui eu – confessou Weston. – Mas, Grace, como poderia eu adivinhar que a reunião seria tão violenta. E Robbie salvou a vida de Glória; você tem de admitir isso. Não pode mandá-lo embora outra vez.
Grace Weston refletiu. Virando-se para Glória e Robbie, observou-os distraidamente por alguns instantes. Glória abraçava o pescoço do robô de um modo que teria estrangulado qualquer criatura que não fosse de metal e murmurava frases incoerentes num frenesi histérico. Os braços de aço-cromo de Robbie(capazes de transformar uma barra de aço com duas polegadas de diâmetro em um parafuso) envolviam delicada e carinhosamente a menina; seus olhos brilhavam com um tom vermelho muito profundo.
– Bem – disse a Sra. Weston, afinal – creio que ele pode ficar conosco até enferrujar.
FIM
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